segunda-feira, 14 de março de 2016

MULHER x (mulher)


                        “Vamos lá: levantem o braço com vontade! Nada de meio bracinho encolhido! Vocês têm que mostrar energia, decisão!!
                        Se você pensou que isso é uma aula de pilates ou uma sessão de aeróbica, errou. Trata-se, na verdade, de uma aula sobre a arte de pedir (e obter) a palavra em público, parte de um projeto que vem sendo realizado desde 2010, pela prestigiada Harvard Business School, nos Estados Unidos, a jovens estudantes inscritas no programa de equidade de gênero, com o intuito de diminuir o gap de desempenho entre estudantes homens e mulheres.
                        O objetivo da atividade? Incentivar a participação feminina nas discussões em classe, responsável por 50% da media final das notas, algo visto como uma dificuldade para elas.
            A iniciativa foi de Drew Gilpin Faust, a primeira presidente mulher de Harvard, após constatar, através de um levantamento histórico dos registros da Universidade, que muito embora calouros de ambos os sexos ingressem naquela universidade com notas e qualificação equivalentes, vão se distanciando ao longo do curso – sempre em favor dos meninos.
                        Visando reverter esse quadro, ela propôs a criação desse programa de equidade de gênero, buscando não só melhorar o desempenho das mulheres em Harvard, mas também capacitá-las para que cheguem à liderança das empresas e em pé de igualdade ao mercado de trabalho com os homens.
                        De acordo com um balanço realizado com a turma de 2013, com o programa houve um aumento significativo das notas das meninas, que concluíram o curso com um número recorde de prêmios acadêmicos e distinções de excelência.
                        Tenho que confessar que quando soube da existência desse programa através de um texto escrito por Cynthia de Almeida, para a revista Claudia, fiquei surpresa. Como assim, as meninas de Harvard, que estão bem longe de ser estudantes medianas ou inseguras e que passaram por um dos mais disputados funis acadêmicos, teriam dificuldade de erguer o braço e participar?             
                           Fiquei muito tempo pensando sobre isso, e de repente, lendo um lindo texto de uma amiga sobre sua história com o Ministério Público, me deparei com a crônica "Mulher entre Parênteses", escrita por Martha Medeiros em 2011 para o Jornal Zero Hora, que até então não conhecia. A crônica fala da mulher boazinha, agradável e insignificante, que não dá opinião, com medo de desagradar. Fala daquela mulher que, mesmo independente financeiramente, tem amarras emocionais que a aprisionam sem cela. Daquela que leva a vida pela metade.
                              Como uma flecha, essa história me remeteu aos ensinamentos da minha mãe e de tantas outras mães que buscam criar as filhas dentro do mais alto e rigoroso padrão social : - Comporte-se;  - Não se mexa tanto; - Não crie confusão;  - Menina bonita não fala alto e não fica chamando a atenção;  – Não questione tanto, é muito feio!! 
                          E as coisas começaram a fazer sentido.  Já não estava mais tão surpresa com o programa de equidade de gênero realizado por Harvard.
                         Então, me lembrei de Virgínia Woolf, que em 1928, no período pós-guerra, escreveu um ensaio sobre a mulher e a literatura e de um jeito poético, ainda que cruel, passeou pelos problemas que, naquele tempo, as mulheres enfrentavam para além da sua literatura (como o fato de que não podiam frequentar faculdades, guardar dinheiro, empreender qualquer que fosse um negócio, etc.).
                        Em “Mulheres e ficção”, Virginia teceu um panorama histórico sobre a escassez de mulheres escritoras, sobre as dificuldades por elas enfrentadas, e sobre como esse cenário começava a dar sinais de mudança. Ao final, chega mesmo a vaticinar: “[…] as mulheres do futuro escreverão menos, mas melhores romances; e não apenas romances, mas também poesia e crítica e história. Ao dizer isso, por certo olhamos à frente, para aquela era de ouro e talvez fabulosa em que as mulheres terão o que por tanto tempo lhes foi negado - tempo livre e dinheiro e um quarto só para si.”
                        E refletindo, percebi que mais de oito décadas depois, muitas coisas mudaram, mas nem tanto. Hoje já podemos votar, frequentar faculdades, entrar em bibliotecas, ter dinheiro no banco e até montar nosso próprio negócio. Não estamos mais dependentes incondicionais de um bom casamento, podemos inclusive nem nos casar e já temos alguma liberdade para decidir entre ter ou não ter filhos, mas ainda temos dificuldade de falar e escrever, relatar e registrar nossas experiências. 
                        Eu sei que escrever é difícil para todo mundo – tanto para homens quanto para as mulheres – mas as vozes masculinas são muito mais presentes. Ainda há pouca gente falando para mulher, sobre mulher, com a mulher. Na maioria das vezes ainda é um homem escrevendo sobre questões nossas.
                       Clarice Lispector, quando tentou, foi taxada de mulher louca. E dia desses, li que J.K Rowling, escritora de Harry Potter, foi aconselhada a abreviar seu nome quando entrou no mercado, para chamar a atenção dos meninos para a sua saga.
                        Na maior parte dos livros as personagens femininas não são as principais – e, quando o são, em geral elas estão chorando por homens. Nos livros de aventura, épico ou fantasia, com personagens femininas em primeiro plano, geralmente elas são masculinizadas para ter um alcance de mercado maior.
                        Os romances estão entrelaçados por nossas fragilidades. Mas raramente pelos motivos com que nossas fragilidades foram criadas. Muito pouco se fala que trocamos de roupa várias vezes antes de colocar nossos pés fora de casa, porque temos que estar belas, mas de forma que não chame a atenção, muito menos desperte a libido. Que trabalhamos muito, para ganhar menos. Que encontramos namorados machistas que querem nos controlar. Das vezes em que somos caladas por homens a nossa volta, com ou sem a consciência deles. De que mulher nas ciências exatas quase não existe e se existe tem que dar um duro danado para chegar em algum lugar. De que mulher nas ciências humanas ainda produz bem pouco de interessante para a academia.
                        Ninguém fala como é a vida de uma mulher que apanha e tenta se livrar do marido. E da que não consegue se livrar do marido, por qualquer que seja a razão (afinal, se ela está com ele é porque gosta de apanhar – como se alguém em sã consciência gostasse de apanhar!!!). Ninguém quer entender como funciona o sistema de aborto clandestino. Porque é sempre mais fácil jogar tudo para debaixo do tapete.
                    Fomos por tanto tempo silenciadas que ao longo do tempo silenciamos, e seguimos preferindo a elegância do silêncio à eloquência.
                        Continuamos mulheres entre parênteses, presas aos estereótipos e às amarras sociais que nos tolhem.
                        A questão, entretanto, é que o silêncio preserva, mas não promove mudanças. Impossível o debate de ideias sem o sacrifício do silêncio.
                        Como banir rótulos? Como mudarmos o nosso próprio pensamento machista, que nos foi incutido desde sempre pela sociedade em que vivemos? Como nos identificarmos, assim como nossas dificuldades e nossas necessidades? Como chegarmos à liderança, sem nos tornarmos eloquentes?
                        A representatividade de nossa luta diária – nas ruas, no trabalho, nos espaços sociais aumentou, é verdade, mas continua baixa.       
                        De repente, me lembrei do quanto fiquei feliz ao saber da existência da campanha “Ban Bossy”, que contou com a participação de Beyoncé, Jane Lynch, Alicia Keys e Jennifer Garner, entre outras, para encorajar a ambição feminina, através do banimento de rótulos, e o programa de equidade de gênero realizado por Harvard passou a fazer todo o sentido.
                        Como explica Beyoncé: - Quando um rapaz se afirma, ele é chamado de "líder"; contudo, quando uma menina faz o mesmo, ela arrisca-se a ser marcada de "mandona", “autoritária”, palavras que trazem incutidas a ideia de que não devemos levantar a mão, não devemos falar mais alto e nos afastam dos anseios de liderança — uma tendência que continua na vida adulta.
                        “Sejam corajosas!” incentiva a campanha. "Há que reconhecer as muitas maneiras com que se desencoraja, sistematicamente, a liderança nas meninas desde tenra idade – ao invés disso, precisamos incentivá-las," diz a COO do Facebook, Sheryl Sandberg.
                        "Eu não sou mandona - eu sou o chefe" ("I'm not bossy – I'm the boss"), conta Beyoncé no vídeo.
                          Para mais informações é só acessar www.banbossy.com
                        Então, finalmente minha surpresa com o programa de Harvard acabou e conclui que ainda bem, sempre é tempo para ensinarmos e aprendermos a levantar a mão.                      
                        Para quem não conhece ou ainda não teve a oportunidade de ler a crônica de Martha Medeiros, segue abaixo:

“Uma mulher entre parênteses

Tinha algo a dizer, mas jamais aos gritos, jamais com ênfase, jamais invocando uma reação.
Era como ela catalogava as pessoas: através dos sinais de pontuação. Irritava-se com as amigas que terminavam as frases com reticências... Eram mulheres que nunca definiam suas opiniões, que davam a entender que poderiam mudar de ideia dali a dois segundos e que abusavam da melancolia.
Por outro lado, tampouco se sentia à vontade com as mulheres em estado constante de exclamação. Extra, extra! Tudo nelas causava impacto! Consideravam-se mais importantes do que as outras! Ela, não. Ela era mais discreta. A mais discreta de todas.
Também não era do tipo mulher dois pontos: aquela que está sempre prestes a dizer uma verdade inquestionável, que merece destaque. Também não era daquelas perguntadeiras xaropes que não acreditam no que ouvem, não acreditam no que veem e estão sempre querendo conferir se os outros possuem as mesmas dúvidas: será, será, será? Ela possuía suas interrogações, claro, mas não as expunha.
Era uma mulher entre parênteses.
Fazia parte do universo, mas vivia isolada em seus próprios pensamentos e emoções.
Era como se ela fosse um sussurro, um segredo. Como uma amante que não pode ser exibida à luz do dia. Às vezes, sentia um certo incômodo com a situação, parecia que estava sendo discriminada, que não deveria interagir com o restante das pessoas por possuir algum vírus contagioso.
Outras vezes, avaliava sua situação com olhos mais românticos e concluía que tudo não passava de proteção. Ela era tão especial que seria uma temeridade misturar-se com mulheres óbvias e transparentes em excesso. A mulher entre parênteses tinha algo a dizer, mas jamais aos gritos, jamais com ênfase, jamais invocando uma reação. Ela havia sido adestrada para falar para dentro, apenas consigo mesma.
Tudo muito elegante.
Aos poucos, no entanto, ela passou a perceber que viver entre parênteses começava a sufocá-la. Ela mantinha suas verdades (e suas fantasias) numa redoma, e isso a livrava de uma existência vulgar, mas que graça tinha?
Resolveu um dia comentar sobre o assunto com o marido, que achou muito estranho ela reivindicar mais liberdade de expressão. Ora, manter-se entre parênteses era um charmoso confinamento. “Minha linda, você é uma mulher que guarda a sua alma."
Um dia ela acordou e descobriu que não queria mais guardar a sua alma. Não queria mais ser um esclarecimento oculto. Ela queria fazer parte da confusão.
“Mas, minha linda...” E não quis mais, também, aquele homem entre aspas.”

1 comentários

Costa Martins 22 de março de 2016 às 21:31

Realmente a décadas as mulheres vem aos poucos encontrando seu espaço no mundo. Embora seja ela a fonte da evolução, desconhece o poder de mudança que sempre esteve em suas mãos. Que esta mulher a séculos cria meninos e meninas, mas esquece que depende dela lapidar um ser humano que é a fonte da igualdade.Acredito que nas próximas gerações desaparecerá meninos e meninas para dar lugar a um novo ser, apenas um ser humano.

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