Como uma verdadeira mulher de idade,
ela era o próprio símbolo da dignidade, sabedoria, experiência, atenção às
tradições e limites bem definidos. Tudo isso, claro, com boa dose de
irreverência irritadiça, franca e encantadora para contrabalançar.
Via-a pouco, mas apreciava-a muito.
Para mim, ela era uma espécie diferente das outras mulheres que conhecia.
Somente em alguns momentos conseguia vê-la em sua dimensão humana. Minha grande
parceira de jogo da memória. A melhor compradora dos meus chaveiros de coleção,
que ela mesma me dava. Apenas nós duas entendíamos quão valiosos e raros eles
eram.
Em sua máquina de costura, ela
inventava maravilhas com restos de tecidos e tinha sempre solução para tudo.
Minhas bonecas eram elegantes graças a ela. E sempre que lhe
confidenciava minhas chateações cotidianas e problemas de família, ela ia logo
dizendo:
-Bobagem filha. A vida é assim mesmo, melhor viver sem muita dramatização. Com
pai e mãe é preciso paciência e família é assim, “à moda da casa”, cada casa
gosta de prepará-la a seu jeito, impossível a comparação
Lugares-comuns, para problemas comuns
de uma vida comum.
Como em geral faz com quase todos, a
vida deu e tirou de tudo da minha avó. Quando menina ela perdeu o pai e depois,
mais um pouquinho, lá se foi o único irmão, que era o arrimo de família. É
incrível como os azares nessa vida sempre vêm aos pares.
Então lá foi ela, ainda muito jovem,
trabalhar para sustentar a casa, a mãe e a irmã. Não demorou muito, sua irmã
sempre muito doente, também faleceu deixando-lhe de presente sua única filha -
minha mãe – para que ela continuasse a criar. E ela criou sozinha, como se fosse
sua.
Enquanto a maioria das mulheres,
naquela época, cursava magistério, minha mãe, orientada por minha avó, estudou
inglês e fez secretariado para poder trabalhar em multinacional. E ganhou dela,
o seu primeiro carro.
-Mulher tem que ser independente, dizia minha avó, como uma verdadeira mulher à frente
de seu tempo.
Durona
feita uma rocha, abraços e carícias decididamente não eram seu forte. Suas
lágrimas jamais ficaram à mostra. Mas sempre que ouvia sobre os meus sonhos
extraordinários e os projetos grandiosos para minha vida, seu riso se abria e
seus olhos brilhavam. E era exatamente nesse seu sorriso que ela me mostrava
que entre um cantinho e outro da boca, sem muito esforço, cabe todo o amor do mundo.
Amor desmedido que dispensa palavras e gestos largos, porque o amor é sempre
assim, cheio de desimportâncias que fazem uma vida.
Somente depois que sua mãe morreu e a
minha mãe se casou que minha avó se permitiu ter um companheiro e uma vida só
dela. Ao optar por não casar foi muito discriminada e ouviu bobagens, mas com
sua elegante irreverência, não se curvou. E foi feliz.
Não tardou, seu companheiro morreu.
Achei que seria um baque, mas ela mudou da casa em que viveu com ele como quem
passa no vestibular. Não, não era falta de saudades ou de amor no casal. Era só
a vontade de viver dela, sempre a prevalecer.
Alguns anos depois, quando minha mãe
faleceu, mesmo na dor inominável da inversão da lógica de sepultar aquele que
deveria sepultá-la, lá estava ela, firme e forte, pronta para me confortar e me
empurrar adiante:
-A vida é professora que dita rápido, acompanha quem puder. Sem autopiedade,
minha filha. Sem autopiedade.
E mais tarde, no meu casamento - tendo feito uma mastectomia há menos de um mês - novamente lá estava ela, linda e
forte, sorrindo para mim.
Não, tragédias não faltaram. Mas a
mulher tinha uma força para seguir em frente que só vendo! Com sua imensa
sabedoria, soube preservar sua individualidade, liberdade e autonomia até o
fim. A solidão nunca a assustou e na sua simplicidade, ela deu conta da vida
curvando-se sempre, sem nunca se quebrar.
Quando ela partiu, foi muito duro.
Lembro-me que passei muito tempo tentando exorcizar a tristeza com rituais
inúteis. Ainda bem o tempo decanta o passado e os dias se encarregam de colocar
tudo na perspectiva adequada. Atualmente lembro-me
dela com alegre saudade. Claro que é possível. Sempre há algo divertido e leve
na dor da lembrança
Hoje minha avó tem cheiro de pão de
queijo e bolo de fubá. Tem gosto de minestrone e de ameixa amarela. E sua marca
registrada é o “coque banana” - impossível ver alguém de coque banana sem me
lembrar dela. Além disso, diversas frases, circunstâncias e alguns dos seus
objetos pessoais, que hoje fazem parte da minha casa, sempre me remetem a ela,
com alegre saudade.
E nesses momentos eu agradeço.
Agradeço aos céus por ter tido o privilégio de ser sua neta. Pela oportunidade
de aprender com ela sua arte de saborear a vida. Agradeço por ela ter de
mostrado, à sua maneira, que a vida sempre é possível.
Espero me lembrar de seus ensinamentos
até o final, mas se por acaso, por algum motivo um dia esquecer, deixo-os aqui
registrado para alguém possa me contar.
-A vida é professora que dita rápido, acompanha quem puder. Sem autopiedade,
minha filha. Sem autopiedade...
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