domingo, 5 de abril de 2015

ENSINAMENTOS DE VÓ

      Minha avó é um presente para sempre presente em tudo que sou. 
     Como uma verdadeira mulher de idade, ela era o próprio símbolo da dignidade, sabedoria, experiência, atenção às tradições e limites bem definidos. Tudo isso, claro, com boa dose de irreverência irritadiça, franca e encantadora para contrabalançar.
      Via-a pouco, mas apreciava-a muito. Para mim, ela era uma espécie diferente das outras mulheres que conhecia. Somente em alguns momentos conseguia vê-la em sua dimensão humana. Minha grande parceira de jogo da memória. A melhor compradora dos meus chaveiros de coleção, que ela mesma me dava. Apenas nós duas entendíamos quão valiosos e raros eles eram.
     Em sua máquina de costura, ela inventava maravilhas com restos de tecidos e tinha sempre solução para tudo. Minhas bonecas eram elegantes graças a ela. E sempre que lhe confidenciava minhas chateações cotidianas e problemas de família, ela ia logo dizendo:
-Bobagem filha. A vida é assim mesmo, melhor viver sem muita dramatização. Com pai e mãe é preciso paciência e família é assim, “à moda da casa”, cada casa gosta de prepará-la a seu jeito, impossível a comparação
    Lugares-comuns, para problemas comuns de uma vida comum.
    Como em geral faz com quase todos, a vida deu e tirou de tudo da minha avó. Quando menina ela perdeu o pai e depois, mais um pouquinho, lá se foi o único irmão, que era o arrimo de família. É incrível como os azares nessa vida sempre vêm aos pares.
    Então lá foi ela, ainda muito jovem, trabalhar para sustentar a casa, a mãe e a irmã. Não demorou muito, sua irmã sempre muito doente, também faleceu deixando-lhe de presente sua única filha - minha mãe – para que ela continuasse a criar. E ela criou sozinha, como se fosse sua. 
    Enquanto a maioria das mulheres, naquela época, cursava magistério, minha mãe, orientada por minha avó, estudou inglês e fez secretariado para poder trabalhar em multinacional. E ganhou dela, o seu primeiro carro.
-Mulher tem que ser independente, dizia minha avó, como uma verdadeira mulher à frente de seu tempo.
    Durona feita uma rocha, abraços e carícias decididamente não eram seu forte. Suas lágrimas jamais ficaram à mostra. Mas sempre que ouvia sobre os meus sonhos extraordinários e os projetos grandiosos para minha vida, seu riso se abria e seus olhos brilhavam. E era exatamente nesse seu sorriso que ela me mostrava que entre um cantinho e outro da boca, sem muito esforço, cabe todo o amor do mundo. Amor desmedido que dispensa palavras e gestos largos, porque o amor é sempre assim, cheio de desimportâncias que fazem uma vida.
   Somente depois que sua mãe morreu e a minha mãe se casou que minha avó se permitiu ter um companheiro e uma vida só dela. Ao optar por não casar foi muito discriminada e ouviu bobagens, mas com sua elegante irreverência, não se curvou. E foi feliz.
   Não tardou, seu companheiro morreu. Achei que seria um baque, mas ela mudou da casa em que viveu com ele como quem passa no vestibular. Não, não era falta de saudades ou de amor no casal. Era só a vontade de viver dela, sempre a prevalecer.
   Alguns anos depois, quando minha mãe faleceu, mesmo na dor inominável da inversão da lógica de sepultar aquele que deveria sepultá-la, lá estava ela, firme e forte, pronta para me confortar e me empurrar adiante:
-A vida é professora que dita rápido, acompanha quem puder. Sem autopiedade, minha filha. Sem autopiedade.
   E mais tarde, no meu casamento - tendo feito uma mastectomia há menos de um mês - novamente lá estava ela, linda e forte, sorrindo para mim.
   Não, tragédias não faltaram. Mas a mulher tinha uma força para seguir em frente que só vendo! Com sua imensa sabedoria, soube preservar sua individualidade, liberdade e autonomia até o fim. A solidão nunca a assustou e na sua simplicidade, ela deu conta da vida curvando-se sempre, sem nunca se quebrar.
   Quando ela partiu, foi muito duro. Lembro-me que passei muito tempo tentando exorcizar a tristeza com rituais inúteis. Ainda bem o tempo decanta o passado e os dias se encarregam de colocar tudo na perspectiva adequada. Atualmente lembro-me dela com alegre saudade. Claro que é possível. Sempre há algo divertido e leve na dor da lembrança
   Hoje minha avó tem cheiro de pão de queijo e bolo de fubá. Tem gosto de minestrone e de ameixa amarela. E sua marca registrada é o “coque banana” - impossível ver alguém de coque banana sem me lembrar dela. Além disso, diversas frases, circunstâncias e alguns dos seus objetos pessoais, que hoje fazem parte da minha casa, sempre me remetem a ela, com alegre saudade.
   E nesses momentos eu agradeço. Agradeço aos céus por ter tido o privilégio de ser sua neta. Pela oportunidade de aprender com ela sua arte de saborear a vida. Agradeço por ela ter de mostrado, à sua maneira, que a vida sempre é possível.
   Espero me lembrar de seus ensinamentos até o final, mas se por acaso, por algum motivo um dia esquecer, deixo-os aqui registrado para alguém possa me contar.
-A vida é professora que dita rápido, acompanha quem puder. Sem autopiedade, minha filha. Sem autopiedade...

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