Com milhões de crianças e jovens brasileiros sem as competências mínimas essenciais de leitura, interpretação de texto e raciocínio matemático, a perdurar não só a defasagem idade-série, como o analfabetismo funcional e o despreparo para a vida profissional e cidadã, a notícia me agradou, na medida em que o desafio da qualidade ocupa espaço crescente no debate público sobre educação no Brasil.
Entretanto, educação em tempo integral não necessariamente se traduz em educação integral. Tudo depende dos objetivos traçados. Afinal, há uma distância enorme entre buscar ocupar os alunos e retirá-los das ruas, como tentativa de resolver o problema da violência urbana e efetivamente garantir-lhes a possibilidade de acessar conhecimentos indisponíveis em outros contextos de suas vidas, com chances reais de alcançar a universidade e sair da pobreza.
Foi então que me lembrei das escolas KIPP- de tempo integral, existentes nos Estados Unidos. A primeira vez que li a respeito delas foi no livro “Fora de Série - Outliers”, de Malcolm Gladwell.
O KIPP, na realidade, é um programa – Knowledge is Power Program, que pode ser traduzido como “Programa Conhecimento é Poder”. Ele foi lançado em 1994, pelos professores Michael Feinberg e Dave Levin, em duas escolas – uma do Bronx e outra em Houston, com o objetivo atender principalmente aos estudantes americanos de baixa renda de famílias afro-americanas e latinas, e a missão de garantir que as crianças dessas famílias - que costumam se perder nos meandros do sistema escolar americano – cheguem à faculdade, se formem e sigam carreiras enriquecedoras.
Segundo pesquisas, 84% dos seus alunos apresentam um desempenho bom ou ótimo em matemática e graças a esses resultados, 90% dos seus ex-alunos obtêm bolsas de estudo para escolas de nível médio particulares ou paroquiais e mais de 80% conseguem cursar uma faculdade – sendo que em muitos casos são os primeiros membros da família a conseguir isso.
Em razão dos bons resultados alcançados nos exames nacionais, baixa taxa de evasão e significativo percentual de seus egressos indo para o ensino superior, o KIPP tem se consagrado como o programa de maior sucesso e que mais tem conseguido agregar valor nos ganhos de aprendizado de crianças em situação de alta vulnerabilidade social.
Mas, qual realmente o segredo de tanto sucesso?
Muito embora inúmeras pesquisas insistam em apontar como justificativas mais recorrentes para a grande disparidade de aprendizado entre crianças pertencentes aos lares mais carentes e aquelas pertencentes a famílias mais abastadas: ou que as crianças dos lares mais carentes simplesmente não possuem a mesma capacidade intrínseca de aprender que as da classe alta; ou que, de algum modo, as escolas estão deixando de cumprir sua missão com os alunos pobres e não estão conseguindo ensinar-lhes as habilidades necessárias, o KIPP fugiu ao senso comum e se baseou em um estudo realizado por um sociólogo, Karl Alexander, da Johns Hopkins University.
Acompanhando o progresso de 650 alunos a partir da primeira série do sistema de ensino público de Baltimore e verificando as suas notas num exame de habilidades matemáticas e de leitura, através desse estudo Karl Alexander descobriu quanto da disparidade de aprendizado resultava de fatos que ocorrem durante o ano escolar e quanto tinha a ver com o que acontece nas férias de verão. E os resultados, embora facilmente compreensível, foram surpreendentes.
Eles apontaram que, enquanto as crianças da classe alta retornavam em setembro com suas notas de leitura quinze pontos acima, as mais pobres voltavam das férias com suas notas de leitura quatro pontos abaixo, levando à conclusão de que os estilos de criação causam sim, grande impacto nos resultados educacionais.
Nas férias, filhos de pais de classe média que possuem educação formal e maiores condições financeiras são levados a museus, matriculados em programas especiais, frequentam programas de férias e acampamentos onde continuam aprendendo. Se estiverem entediados, tem à disposição livros para ler e seus pais geralmente se sentem responsáveis por mantê-los ativamente envolvidos com o mundo à sua volta, o que possibilita a eles maiores condições para melhorarem nas férias escolares a leitura e a matemática. Quando os pais são pobres e não tiveram acesso ao ensino formal, porém, as crianças não têm condições de frequentar acampamentos, programas de férias. Não dispõe de livros para ler, sendo muito provável que exista apenas uma televisão e a possibilidade de brincadeiras despreocupadas.
Então, Alexander realizou um cálculo simples para demonstrar o que aconteceria se as crianças de Baltimore frequentassem a escola durante todo o ano e o resultado foi que, no fim da quinta séria, os alunos ricos e os mais pobres estariam quase no mesmo nível em matemática e leitura, o que o permitiu concluir que muito provavelmente não há um problema escolar ou curricular nas escolas públicas, mas sim de férias e período de funcionamento das escolas, para proporcionar um nível adequado de ensino aos mais carentes.
Visando solucionar essa questão, as escolas KIPP resolveram oferecer aos seus alunos, aula das 7:25 às 17:00 hs, todos os dias, fazendo com que suas crianças estudem 60 a 70% mais tempo do que as da escola pública tradicional.
Mas não foi só isso. Elas também se basearam no conceito asiático de estudo e trabalho, que possuí uma visão de mundo moldada pelos arrozais. Na rizicultura, quanto mais se trabalha num arrozal, mais ele produz, havendo uma clara relação entre esforço e trabalho. Por isso, nessa cultura se acredita que o caminho para o sucesso está no acordar antes do amanhecer, 360 dias por ano, e que dar duro é o que as pessoas bem-sucedidas fazem.
Enquanto no Japão o ano escolar dura 243 dias, com carga horária média de sete horas por dia, enquanto nos Estados Unidos o ano escolar conta com 180 dias e carga horária media de cinco horas. No Brasil, somente a partir de 1996 o ano escolar passou a ser de 200 dias.
Assim, nas escolas KIPP, muito embora não haja exame de admissão, nem pré-requisitos para o ingresso (a escolha é feita por sorteio), os estudantes só são aceitos se eles e seus pais, com o apoio dos professores, se comprometerem formalmente a colocar o aprendizado em primeiro lugar.
Além disso, nessas escolas a aprendizagem centra-se em 49% de conteúdos acadêmicos (academics) e 51% formação humana (character).
O que significa dizer que o programa KIPP é muito mais que o aumento da carga horária, representando, na realidade, uma nova filosofia educacional, considerada atualmente como uma das mais promissoras dos Estados Unidos, cujo sucesso não está relacionado somente ao currículo, aos professores, a recursos financeiros nem a algum tipo de inovação organizacional, mas principalmente, à mudança de paradigma, que leva a sério a ideia do legado cultural.
Segundo David Levin, “o sucesso depende de muitos fatores: resistência, motivação, incentivo, recompensa, atividades divertidas e também da velha e boa disciplina. Conversamos muito com as crianças sobre determinação e autocontrole. Elas sabem o que estas palavras significam.” E isso, com certeza, faz toda a diferença.
Ninguém duvida que o crescimento e a sustentabilidade do nosso país, nas próximas décadas, dependerão de políticas sociais e econômicas, e principalmente, de uma reforma inadiável no sistema educacional. Situação que não admite mais ações pontuais, muito menos improvisos. Nossa baixa competitividade no cenário global do futuro é flagrante.
Por isso, deixo aqui registrado o modelo de escolas KIPP, com a esperança e o desejo de que essa nova iniciativa de jornada em tempo integral realmente faça sentido, garantindo professores motivados e qualificados, recursos didáticos, ambientes de aprendizagem de ponta e uma gestão de excelência, e principalmente, represente um pacto social e uma chance real para os nossos jovens saírem da pobreza.
Sem isso, lá se vão os royalties do petróleo, que tanto podem turbinar nosso ensino, a escorrer pelo ralo. E de ralo já estamos cheios, não é mesmo?
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