segunda-feira, 22 de setembro de 2014

A CULPA NÃO É SUA

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     Graças aos céus e ao movimento feminista, que fez muito barulho, o ilustre governador Geraldo Alckmin vetou o projeto de lei que pretendia obrigar as empresas de transporte urbano a manterem, no mínimo, um vagão rosa em cada composição dos trens da CPTM e do Metrô, para uso exclusivo das mulheres, nos horários de pico.
     Para quem não acompanhou, referido projeto, de autoria do deputado Jorge Caruso (PMDB), chegou a ser aprovado pela Assembleia Legislativa, em julho deste ano, e tinha por objetivo evitar casos de assédio sexual contra mulheres no transporte público.
     Simples assim. Como se segregar mulheres fosse a grande solução para anos de omissão em políticas de efetivo combate à violência sexual. E principalmente, como se todas as mulheres, que atualmente representam 58% dos usuários do metrô, efetivamente coubessem num único vagão.
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     Na prática, uma mensagem do tipo: “Alô, mulheres. Se pegarem trem ou metrô em São Paulo, prestem atenção às orientações do sistema de som: “Se você estiver com vontade de ser violentada, ou ao menos receber uns apertões na bunda e nos peitos, siga para o vagão comum. Se estiver cansada, introspectiva, teve um dia difícil, está com TPM, vá para o rosa e viaje tranquila”. Uma excelente semana a todas.” (Eliane Brum – Vagão Rosa para não ser encoxada)

     Poderia ser uma piada de mau gosto, mas infelizmente não é. Em pleno Século XXI, com várias mulheres disputando a presidência do País, muitas pessoas ainda acreditam ser necessário criar um vagão só para mulheres, nos trens de transporte público da cidade mais cosmopolita do país.
     E o mais bizarro é que a brilhante ideia não é nem nova, muito menos privilégio de São Paulo. Algo similar já existe no Rio de Janeiro, assim como na Indonésia, Japão, México, Egito, Índia, Irã, Filipinas, Malásia e Dubai. Reparem que o fato de serem todos países de cultura sabidamente machista, no caso, não é mera coincidência.
     A China, por sua vez, preferiu inovar, fugindo um pouco à regra. Buscando uma maior ‘educação e civilidade’, os chineses lançaram uma campanha nos trens da cidade de Xangai, consistente na afixação de cartazes pelos metrôs contendo a figura de uma mulher vestida de burca e a seguinte mensagem: “Girls, please be self-dignified to avoid perverts”. Em português algo próximo a: “Garotas, por favor, se dêem ao respeito para evitar pervertidos”.
     Em outras palavras: se não quiser ser abusada no metrô da China, vá de burca!
     Óbvio! Afinal, no Oriente Médio, onde esses trajes são obrigatórios ‘não existem estupros’, não é mesmo?
     Absolutamente não. O que acontece é que lá, os números sobre estupro são 'estuprados', porque as mulheres abusadas são ensinadas a se envergonhar de si mesmas e uma denúncia na polícia pode comprometer a honra da família. Nas regiões tribais, pais e irmãos inclusive apedrejam as filhas violentadas!
     Seria cômico, se não fosse tão trágico. Se tudo isso não retratasse o que ainda somos, como resultado de uma trajetória histórica de negações de direitos que insiste em se perpetuar. E principalmente, se não refletisse o machismo estrutural existente na sociedade, que conserva incólume a medieval concepção feminina onde se negam os direitos em nome da preservação de valores, infelizmente repetida de forma inconsciente e inconsequente por todos nós, homens e mulheres.
     Na Idade Média, as mulheres eram tratadas como loucas só por ter orgasmos, e tinham seus corpos queimados em praça pública. “Fogo na possuída”, gritava o bispo, juntamente com o ex amante, com a empolgação da multidão hipócrita.
     Na África, nas mais diversas tribos, em um ritual vudu dos mais emporcalhados, meninas têm seus clitóris arrancados com cacos de vidro para que jamais sintam prazer sexual e possam honrar os pais, cumprir a tradição e satisfazer os deuses.
     Durante a guerra, várias mulheres são estupradas por pelotões inimigos, sempre em nome da paz, da loucura e da pátria. Nos muquifos do agreste nordestino, meninas e mulheres são abusadas pelo pai, pelo avô, pelos tios embriagados, pelos primos adolescentes.
     Mulheres são estupradas, agredidas e mortas dentro de suas casas, nos mais diversos locais do mundo.
     Recentemente, a diretora-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), Margaret Chan, classificou a violência contra mulher como um problema de saúde global no mesmo patamar de uma epidemia. Um relatório divulgado pela entidade em junho de 2013, diz que a violência física e sexual atinge 35% das mulheres no mundo. Isso significa que uma em cada três mulheres sofreu algum tipo de abuso.
     Para tanta hipocrisia, só mesmo muita ironia.
     Esse foi o caminho encontrado pela atriz de Bollywood, Kalki Koechlin, para suscitar a reflexão das pessoas, após o ocorrido em dezembro de 2012, na índia, quando uma mulher indiana morreu, depois de ter sido estuprada coletivamente dentro de um ônibus.
     Com tamanha brutalidade e crueldade e mesmo depois de atravessar o oceano para expor ao mundo uma ferida aberta de um país, muitos políticos conservadores da polícia e até juízes continuaram a sugerir publicamente que de alguma forma as mulheres na Índia estão pedindo para serem estupradas - vestindo-se de forma provocativa, ficando fora até tarde da noite e demonstrando ousadia de ter amigos do sexo masculino.
     O popular guru indiano Asaram Bapu, chegou a dizer que a vítima também teve culpa, embora em menor medida que os agressores, já que em vez de resistir “devia ter rezado para Deus e pedido aos estupradores, chamando-os de ‘Bhaya’ (irmão), que a deixassem em paz”.
     Em meio a tudo isso, buscando fazer um contraponto, Kalki Koechlin resolveu fazer um vídeo retratando essa lógica insana, chamado “It’s your fault" (A culpa é sua), que se tornou viral, com milhares de acessos no YouTube.
     Em um espaço branco e vazio, acompanhado por música típica de televendas, a gravação de três minutos mostra duas indianas que, sorridentes, explicam, sem dramas, que tipo de atitude feminina provocam, para que os homens as estuprem.
     “Sejamos sinceras, meninas, os estupros são culpa nossa. Estudos científicos sugerem que as mulheres que usam saia são a principal causa de estupro. Sabe por quê? Porque homens têm olhos”, afirma a atriz Kalki Koechlin no início do anúncio.
     O vídeo, ainda mostra uma das atrizes sendo atacada por vários homens e como consegue se livrar do estupro ao conseguir pronunciar a palavra ‘Bhaya’.
     “Sempre funciona”, afirma sorridente a jovem, que pede às mulheres “que deixem de seduzir os homens para que as estuprem”.
     A polícia também não escapou da paródia no vídeo, acusada em várias ocasiões de incompetente e insensível diante das agressões sexuais, e de transformar as delegacias, como denunciou a organização Human Rights Watch, em “lugares que inspiram temor”.


Para visualizar o vídeo acesse o link:

     Aqui no Brasil, muito embora desde 1990, o crime de estupro seja considerado hediondo, submetendo-se, portanto, a um tratamento penal mais rigoroso, até 2009, tanto o estupro como os crimes sexuais em geral, eram classificados como “crimes contra os costumes”.
     Isso mesmo. Até 2009, da forma como vinha disposto no Código Penal, o crime de estupro não visava à proteção da mulher, mas à preservação dos “bons costumes”. Portanto, protegia a mulher, desde que se tratasse de “mulher honesta” – aquela católica devota, a “mãe de família”, a mulher subserviente e de bons costumes.
    O conceito de “mulher honesta” era tão forte e preponderante, que uma das raras hipóteses a permitir a anulação do casamento - até então indissolúvel – era o fato do marido descobrir que sua esposa não era virgem. Desonra que também possibilitaria fosse deserdada pelo pai.
    E por desonra leia-se: vida sexual ativa.
     A grosseria machista chegava a tal ponto dos juristas sustentarem que a mulher casada não poderia ser vítima de estupro pelo marido, uma vez que era obrigada “ao débito conjugal”, ou seja, o marido que a obrigasse a manter relações sexuais estaria apenas agindo no exercício regular de um direito.
     Outro crime, chamado "corrupção de menores", exigia para sua configuração que houvesse prova efetiva da ingenuidade da adolescente. Na verdade, que fosse ela quase uma alienada mental. Caso "soubesse das coisas do sexo", estaria corrompida e não seria ‘honesta’, portanto, o fato seria atípico e ficaria à margem da proteção da lei.
     No crime de estupro, caso houvesse o que a lei chama de “violência presumida”, que ocorria em situações em que a mulher estivesse sem condições de reagir ou fosse menor de catorze anos, a situação era degradante: o agressor vitimizava-se e se apresentava como vítima de ‘sedução’, e nesses casos, quem acabava julgada, em meio a um cenário predominantemente masculino, era a vítima, em sua “honestidade”. Caso a mulher não fosse reconhecida “honesta”, o agressor estaria livre e ela, exposta a uma situação pública absolutamente vexatória.
     Foi apenas em 2009, com a redação dada pela Lei n 12.015/2009, que os crimes contra os costumes passaram a ser classificados “Crimes contra a dignidade e liberdade sexual”, e finalmente foram subtraídas dos tipos penais as expressões “mulher honesta” e “mulher virgem”.
     E somente em 2006, com a Lei n 11.340, conhecida como Lei Maria da Penha, que o Estado finalmente resolveu meter a colher, nas brigas de marido e mulher.
     Entretanto, a realidade nos mostra que ainda somos incapazes de lidar com a igualdade de gênero e que a nossa cultura machista continua impregnada, sem se dar conta de toda a evolução social.
     O Gigante acordou, mas continua machista. E a altura das saias e o tamanho dos decotes ainda continuam injustificadamente justificando a prática dos mais diversos tipos de assédio sexual, e a mulher continua sendo considerada de vítima, a grande algoz.
     Mudamos a letra da lei, é verdade, mas agora precisamos avançar mais, para internalizar em nossas mentes e corações essa mudança.
     Espero viver para ver o dia em que campanhas e políticas públicas ensinem, não uma mulher a não ser estuprada, mas um homem a não estuprar. Que as mulheres não são corpos disponíveis. Que quem cala não consente. E que ESTUPRO É CRIME.
     Porque o único culpado pelo estupro/assédio é o homem, e não a mulher, não importa onde ela esteja ou qual roupa esteja usando. Porque mulheres não são culpadas por existir.
     PORQUE NÃO, ISSO NÃO É NORMAL E A CULPA NÃO É SUA.

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