terça-feira, 12 de abril de 2016

O PÓ QUE NOS UNE

                       
                            Todos nós sabemos, somos mortais. Seja por ordens da natureza, por acidente, por vontade própria ou alheia, um dia morreremos. Entretanto, muito embora essa seja a nossa única certeza, não gostamos de lembrar dela. Eu também não gosto. Longe de mim ser uma pessoa mórbida. Amo a vida. Entretanto, gostando ou não, a morte faz parte da vida de todos nós.
                            Diz a lenda, que há muito tempo, no Tibete, uma mulher viu seu filho, ainda bebê, adoecer e morrer em seus braços, sem que ela nada pudesse fazer. Desesperada, saiu pelas ruas implorando que alguém a ajudasse a encontrar um remédio que pudesse curar a morte do filho. Como ninguém podia ajudá-la, a mulher procurou um mestre budista, colocou o corpo da criança a seus pés e falou sobre a profunda tristeza que a estava abatendo. O mestre, então, respondeu que havia, sim, uma solução para a sua dor. Ela deveria voltar à cidade e trazer para ele uma semente de mostarda nascida em uma casa onde nunca tivesse ocorrido uma perda. A mulher partiu, exultante, em busca da semente. Foi de casa em casa, sempre ouvindo as mesmas respostas: - Muita gente já morreu nessa casa; -Desculpe, já houve morte em nossa família. Depois de vencer a cidade inteira sem conseguir a semente de mostarda pedida pelo mestre, a mulher voltou até ele e disse: -“O sofrimento me cegou a ponto de eu imaginar que era a única pessoa que sofria nas mãos da morte”.
                            De fato, a morte não é privilégio nem desgraça particular de ninguém. Senhora do destino, é certeira e certeza. Leva quem tem que levar e àqueles que ficam deixa a ruptura dolorosa e oferece a chance de pensar e repensar sobre a vida. Antes de sumir, lembra que irá voltar sem data marcada, e deixa a certeza que de a vida sempre continua. A vida que começa nos garantindo apenas o fim.    
                            É interessante como a história humana pode ser contada pelo modo como cada sociedade, em diferentes períodos históricos, olhou para a morte e lidou com ela.
                               Até meados do século passado, por exemplo, era costume morrer em casa, cercado por parentes. “A família reunia-se em volta do leito para ouvir a última palavra daquele que estava morrendo”.
                            Aos poucos, porém, o mundo ocidental foi transformando a morte em tabu: um fato a ser ocultado e banido das conversas cotidianas. Os doentes passaram a morrer no hospital, longe dos olhos – e, não raro, do coração – de seus amigos e parentes, com direito a rituais de luto cada vez mais rápidos e pragmáticos. Tudo aquilo que pudesse lembrá-la – a enfermidade, a velhice e a decrepitude – foi sendo escamoteado. O medo natural que todo ser humano sente diante da própria finitude virou pânico. E passamos a viver a morte calada, ignorada e ocultada entre as paredes de um hospital.
                            Entretanto, ao calarmos sobre morte, perdemos uma grande oportunidade de pensarmos sobre a vida e o tempo. E ao não dialogarmos com a dor, aos poucos vamos deixando de reconhece-la como a inimiga admirável que é, capaz de nos tornar um ser humano mais forte.    
                            Ainda bem, no século 21, a morte calada e clandestina que se estabeleceu no século 20 começa a ser colocada em xeque, passando a mostrar ares de “desavergonhada”.
                            Bom mesmo seria se a morte, depois de anunciada, acontecesse de forma mansa e sem dores, longe dos hospitais, em meio às pessoas que se ama, em meio a visões de beleza. Mas infelizmente, nem sempre é isso que acontece.
                            O morrer pode vir acompanhado de dores, humilhações, aparelhos e tubos enfiados no nosso corpo, contra a nossa vontade, sem que possamos nada fazer, porque já não somos mais donos de nós mesmos. Então, como agir quando formos “notificados” pela natureza de que o “nosso prazo de validade ” venceu?
                             Um dia, assistia a um documentário da National Geograhic sobre a vida dos lobos, quando uma loba matou um de seus filhotes que estava mortalmente ferido. Para mim, foi como uma dura lição sobre a compaixão e a necessidade de permitir que a morte venha aos que estão morrendo.  

           Por indicação de uma amiga, também assisti ao filme de Barry Levinson, com Al Pacino, feito para a TV HBO e lançado em DVD com o título “Você não conhece JACK – A vida e as mortes por Jack Kevorkian “. Jack é um médico estadunidense de origem armênia, que logo no início de sua carreira ganhou o apelido de “Dr. Morte“. Ele inventou uma máquina – mais parecida com uma geringonça – que possibilitava aos pacientes cometer suicídio apertando um botão que liberava uma série de drogas no organismo, auxiliando as pessoas com sofrimento insuportável e que desejavam morrer, que conseguissem fazê-lo e pudessem morrer condignamente. Sua crença era de que as pessoas tinham o direito de evitar uma morte sofrida e demorada e de terminar suas vidas com a ajuda de um médico que lhes assegurasse uma morte tranquila.
                            Seria eutanásia, suicídio assistido ou morte com dignidade?                      
                             Lá nos EUA, como o direito penal é regido por leis estaduais, a tipificação desse ato era diferente entre os diversos estados da federação, o que gerou enorme polêmica sobre a atividade desse médico. Todavia, em 1993, o Poder Legislativo de Michigan baixou uma lei que tornava crime alguém fornecer conscientemente a outra pessoa os meios para cometer suicídio, e em dezembro de 1994 a Suprema Corte de Michigan declarou que essa lei era constitucional, possibilitando que Jack Kevorkian fosse processado criminalmente. Ele acabou condenado por homicídio, cumpriu pena até 2007 e no ano de 2011 faleceu, aos 83 anos de idade. Mas deixou um legado.
                            Alguns países europeus como a Holanda, Bélgica, Suíça, Luxemburgo e alguns estados dos EUA, a partir dos anos 90 legalizaram essa conduta médica que proporciona morte digna aos pacientes terminais que sofrem demais e desejam apressar sua morte.
                            Para o nosso direito penal, que vale para todo o território nacional, desde sempre, e ainda que seja a pedido do paciente, a conduta do Dr. Jack é tratada como homicídio doloso, mas privilegiado (com redução da pena).
                            E os únicos projetos de lei do Senado existentes aqui no Brasil, na atualidade, cuidam da prática da ortotanásia, que é outra coisa.
                            A ortotanásia consiste em oferecer apenas cuidados paliativos – assistência permanente, meios ordinários e medicamentos possíveis – àqueles pacientes terminais, que se recusam a receber tratamentos médicos extraordinários e tratamentos invasivos que prolonguem sua vida em condições precárias. Por exemplo, sejam ligados a máquinas.
                             Mesmo ainda sem a existência de lei, esse procedimento foi regulamentado pelo CFM – Conselho Federal de Medicina – em novembro de 2006, e só pode ser realizado quando não é mais possível a cura do paciente, desde que mediante autorização do próprio paciente ou de sua família, no caso de incapacidade do primeiro. A morte do papa João Paulo II é um dos exemplos mais conhecidos de ortotanásia. E no Brasil, Mário Covas também optou por isso.
                            Em 2012, também o Conselho Federal de Medicina baixou a polêmica Resolução n 1995, que instituiu as Diretivas Antecipadas de Vontade, também conhecida como Testamento Vital, que autoriza que os pacientes decidam, prévia e expressamente, a quais cuidados e tratamentos querem ser submetidos no final de suas vidas, quando estiverem incapacitados de expressar livre e autonomamente suas vontades.
                            Entretanto, ainda continuamos indiferentes, impedindo qualquer auxílio médico que venha proporcionar morte digna aos que sofrem dores lancinantes ou humilhações e desejam morrer. E seguimos vivendo a nossa própria vida, sem o  direito de morrermos a nossa própria morte. 
                            Obviamente, esse assunto envolve questões dificílimas, relativas a afetos, respeito à dignidade das pessoas e crenças religiosas. Mesmo assim, é preciso encará-lo de frente e com coragem.
                            Não dá mais para vivermos a morte “envergonhada” ou “clandestina” que se estabeleceu no século 20, solitária, onde ninguém tem coragem ou palavras para falar sobre a morte, nem o próprio doente. Onde as pessoas continuam perguntando o que mais os médicos podem fazer por ela, na esperança de vencerem a doença, mas sem tempo para se despedirem de ninguém e sem permitir que se despeçam dela. E as famílias, desesperadas, só pensam em fazer tudo e de tudo para estender a vida a qualquer custo, como se todos – médicos, familiares e doente - tivessem o dever de fazer todo o possível para que a vida continue, sem dar ouvidos ao pedido que a vida está fazendo e sem nem mesmo escutar aquele que vive o seu morrer.
                            Quando se espera que a ciência prolongue a vida a qualquer preço e a juventude torna-se um valor em si, só resta à morte se tornar um fracasso a ser escamoteado. Entretanto, ao não reconhecermos nossa finitude, nos desumanizamos. Não somos mercadorias e não podemos aceitar ser no final da vida.
                             Por isso, mesmo com toda a dor, os sentimentos ambíguos, conflitos e contradições que a povoam, precisamos sim, falar sobre a morte. Principalmente, precisamos discutir a morte publicamente. Está mais do que na hora de nos reconciliarmos com ela.
                            E cá entre nós: reconhecer a nossa finitude e lembrar do pó que nos une, sempre nos leva a  reordenar nossos valores, o que nos faz  pessoas melhores.
                            Como um sopro de inspiração e para reflexão, deixo aqui registrada a carta de despedida, escrita pelo neurologista e escritor Oliver Sacks, ao descobrir, após uma biópsia, que possuía uma metástase grave no seu fígado.
                            Com o título de “Minha própria vida”, Oliver Sacks - um dos pensadores mais interessantes do nosso tempo- faz uma linda declaração de amor à vida e nos conta sobre o seu morrer. E,  com extrema delicadeza, nos lembrar que a largura da vida é muito mais importante que o seu comprimento.
"Há um mês, eu sentia que estava em boas condições de saúde, robusto até. Aos 81 anos, ainda nado uma milha por dia. Mas a minha sorte acabou – há algumas semanas, descobri que tenho diversas metástases no fígado. Nove anos atrás, encontraram um tumor raro no meu olho, um melanoma ocular. Apesar da radiação e os lasers que removeram o tumor terem me deixado cego deste olho, apenas em casos raríssimos esse tipo de câncer entra em metástase. Faço parte dos 2% azarados.
Sinto-me grato por ter recebido nove anos de boa saúde e produtividade desde o diagnóstico original, mas agora estou cara a cara com a morte. O câncer ocupa um terço do meu fígado e, apesar de ser possível desacelerar seu avanço, esse tipo específico não pode ser destruído.
Depende de mim agora escolher como levar os meses que me restam. Tenho de viver da maneira mais rica, profunda e produtiva que conseguir. Nisso, sou encorajado pelas palavras de um dos meus filósofos favoritos, David Hume, que, ao saber que estava terminalmente doente aos 65 anos, escreveu uma curta autobiografia em um único dia de abril de 1776. Ele chamou-a de “Minha Própria Vida”.
“Estou agora com uma rápida deterioração. Sofro muito pouca dor com a minha doença; e, o que é mais estranho, nunca sofri um abatimento de ânimo. Possuo o mesmo ardor para o estudo, e a mesma alegre companhia de sempre.”
Tive sorte de passar dos oitenta anos. E os 15 anos que me foram dados além da idade de Hume foram igualmente ricos em trabalho e amor. Nesse tempo, publiquei cinco livros e completei uma autobiografia (um pouco mais longa do que as poucas páginas de Hume) que será publicada nesta primavera; tenho diversos outros livros quase terminados.
Hume continua: “Eu sou… um homem de disposição moderada, de temperamento controlado, de um humor alegre, social e aberto, afeito a relacionamentos, mas muito pouco propenso a inimizades, e de grande moderação em todas as minhas paixões.”
Aqui eu me distancio de Hume. Apesar de desfrutar de relações amorosas e amizades e não ter verdadeiros inimigos, eu não posso dizer (e ninguém que me conhece diria) que sou um homem de disposições moderadas. Pelo contrário, sou um homem de disposições veementes, com entusiasmos violentos e extrema imoderação em minhas paixões.
E ainda assim, uma linha do ensaio de Hume me toca como especialmente verdadeira: “É difícil”, ele escreveu, “estar mais separado da vida do que eu estou no presente.”
Nos últimos dias, consegui ver a minha vida como a partir de uma grande altitude, como um tipo de paisagem, e com uma sensação cada vez mais profunda de conexão entre todas as suas partes. Isso não quer dizer que terminei de viver.
Pelo contrário, eu me sinto intensamente vivo, e quero e espero, nesse tempo que me resta, aprofundar minhas amizades, dizer adeus àqueles que amo, escrever mais, viajar se eu tiver a força, e alcançar novos níveis de entendimento e discernimento.
Isso vai envolver audácia, clareza e, dizendo sinceramente: tentar passar as coisas a limpo com o mundo. Mas vai haver tempo, também, para um pouco de diversão (e até um pouco de tolice).
Sinto um repentino foco e perspectiva nova. Não há tempo para nada que não seja essencial. Preciso focar em mim mesmo, no meu trabalho e nos meus amigos. Não devo mais assistir ao telejornal toda noite. Não posso mais prestar atenção à política ou discussões sobre o aquecimento global.
Isso não é indiferença, mas desprendimento – eu ainda me importo profundamente com o Oriente Médio, com o aquecimento global, com a crescente desigualdade social, mas isso não é mais assunto meu; pertence ao futuro. Alegro-me quando encontro jovens talentosos – até mesmo aquele que me fez a biópsia e chegou ao diagnóstico de minha metástase. Sinto que o futuro está em boas mãos.
Nos últimos dez anos mais ou menos, tenho ficado cada vez mais consciente das mortes dos meus contemporâneos. Minha geração está de saída, e sinto cada morte como uma ruptura, como se dilacerasse um pedaço de mim mesmo. Não vai haver ninguém igual a nós quando partirmos, assim como não há ninguém igual a nenhuma outra pessoa. Quando as pessoas morrem, não podem ser substituídas. Elas deixam buracos que não podem ser preenchidos, porque é o destino – o destino genético e neural – de cada ser humano ser um indivíduo único, achar seu próprio caminho, viver sua própria vida, morrer sua própria morte.
Não posso fingir que não estou com medo. Mas meu sentimento predominante é de gratidão. Amei e fui amado; recebi muito e dei algo em troca; li, viajei, pensei e escrevi. Tive uma relação com o mundo, a relação especial de escritores e leitores.
Acima de tudo, fui um ser senciente, um animal pensante nesse planeta maravilhoso e isso, por si só, tem sido um enorme privilégio e aventura.”
 
 

 

 

3 comentários

Costa Martins 5 de maio de 2016 às 21:25

A dificuldade em falar da morte, esta na mistura de medo do desconhecido com a sensação de estar sozinho sem algum que estaria ao nosso lado nos amava. Mas numa visão mais otimista, nos faz agradecer ao privilégio de ter compartilhado uma existencia com quem perdemos para a morte e que nos ensina a ver a importancia de cada minuto da vida que vivemos com quem se foi e a importacia da nossa propria vida.

penso logo Anna 10 de maio de 2016 às 16:04

Pura verdade.

Unknown 13 de julho de 2017 às 05:01

:)

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