terça-feira, 26 de janeiro de 2016

HOLOCAUSTO BRASILEIRO

                                             ESCRITO POR ANNATROTTAYARYD
  Para alguns, o nome Holocausto Brasileiro pode parecer, à primeira vista, algum tipo de hipérbole marqueteira, mas não é. Trata-se, na realidade, de um importante livro-reportagem de autoria da jornalista Daniela Arbex, que resgata do esquecimento um dos capítulos mais macabros da nossa história: a barbárie e a desumanidade praticadas, durante a maior parte do século XX, no maior hospício do Brasil, conhecido por Colônia, onde, com a conivência de médicos, funcionários e da própria sociedade, o Estado violou, matou e mutilou dezenas de milhares de internos.
  Ironicamente, ou talvez não, tal qual os habitantes dos campos nazistas, os internos do Colônia eram enviados para lá por trens, os “trens de doido”, como eram chamados regionalmente, a partir de expressão criada por Guimarães Rosa.  Eram epiléticos, alcoólatras, homossexuais, prostitutas, tímidos, meninas grávidas violentadas por seus patrões, gente que se sentia triste, gente que se rebelava ou apenas gente que incomodava alguém com mais poder, a maioria sem qualquer diagnóstico médico.  Também havia crianças transferidas do Hospital de Neuropsiquiatria Infantil, em Oliveiras, MG, todos ali largados à própria sorte, sem qualquer projeto terapêutico ou acesso à educação formal ou informal. 
  Ao chegar, perdiam seus bens, seus nomes, seus vínculos, sua voz e sua dignidade. Viviam nus, comiam ratos, bebiam água do esgoto, dormiam ao relento, eram espancados. Nas noites geladas, cobertos por trapos, morriam de frio. Como a morte simbólica se dava na ocasião da internação, a morte física mal era notada. Entre 1968 e 1980 essa fábrica de mortes se deu conta do valor de mercado dos cadáveres dos sujeitos que, quando vivos, nada valiam; 1823 corpos foram vendidos para suprir 17 faculdades de Medicina em todo o país. Ao menos 30 bebês foram “sequestrados” e “adotados” por “famílias de bem”.
  Transformando em palavras o que era silêncio e devolvendo nome, história e identidade àqueles que até então eram invisíveis de todos nós, o livro Holocausto Brasileiro dói e assusta ao mostrar as vítimas da violência dos normais. E, ao expor e resgatar com veemência o lado sombrio dos hospícios e o uso do poder arbitrário pelas autoridades, tantas vezes convertido em completo abuso e descaso, nos faz estremecer.
  Nas fotografias, o livro mantém vivo o passado recente, escancara a miséria humana e compartilha conosco o sofrimento das pessoas que resistiram e sobreviveram.         
  Para quem não sabe, a prática alienante e degradante do “Hospital Psiquiátrico Colônia” foi mantida até o início da década de 1980, quando a redemocratização gradual do país levantou a cortina de ferro que o protegia, indignando a opinião pública, que exigiu mudanças efetivas. A figura mais ilustre a emprestar seu prestígio e força política na denúncia do “Hospital Psiquiátrico Colônia” foi o psiquiatra italiano Franco Basaglia, teórico da Reforma Psiquiátrica, que levou à abertura de todos os manicômios daquele país, em 1973. Ele veio ao Brasil em 1979 para uma série de palestras, oportunidade em que o psiquiatra mineiro Antônio Soares Simone o convidou para visitar uma série de hospitais públicos daquele Estado, dentre eles, o “Colônia”.
    No final de sua visita, Basaglia convocou uma coletiva de imprensa e denunciou as condições desumanas do hospital, comparando-o a um campo nazista.  Esta entrevista teve forte repercussão nacional e internacional e não pode ser abafada.  Mesmo assim, Simone sofreu processo dos hospitais visitados e correu o risco de ter seu diploma cassado pelo CRM. 
  A repercussão desta denúncia aumentou a pressão sobre o poder público e ficou mais difícil impedir novas visitações, o que possibilitou a realização das reportagens de Hiram Firmino no “Estado de Minas” e do filme Em Nome da Razão, de Helvécio Ratton. Estes trabalhos deram condições políticas para a Luta Antimanicomial e para a organização da Reforma Psiquiátrica brasileira, que definiu novas diretrizes para a Saúde Mental, superando o modelo manicomial que perdurava desde a era Vargas, num importante esforço de redemocratização do país. 
   Essa história, entretanto, ainda não acabou.  A vistoria nacional realizada em 2004 pelo Conselho Federal de Psicologia em parceria com o Conselho Federal da OAB contabilizou 28 instituições com internos em condições degradantes, altos índices de óbitos, cárceres e instrumentos de coerção e tortura. Em nova vistoria realizada em 2011, constatou-se a permanência de maus tratos e violação dos direitos humanos tanto em hospitais quanto em Comunidades Terapêuticas.
     Certamente o respeitar o diferente, o aprender com o estranho e o tolerar os outros representam grandes desafios para o gênero humano e para qualquer sociedade que deseja o progresso e o desenvolvimento real.
  Mas o que vimos durante anos, foram soluções mais fáceis, no sentido de segregar aqueles que são diferentes, afastar outros que fogem ao padrão estabelecido, a fim de proteger o conjunto de crenças consolidadas para manutenção do estado de coisas existente.
  Essas atitudes separatistas e distintivas entre seres humanos, porém, nunca aparentaram ser efetivamente positivas para o gênero humano. Excluir aqueles que são supostamente diferentes, apenas pelo mero fato de que não compartilham de um mesmo padrão mental, representa uma atitude odiosa de sociedades excludentes e preconceituosas.
     Evidente que existe o outro lado, de onde é possível fazer também um relato tão chocante e tocante, mostrando loucos que desgraçaram a vida de inocentes, que infernizaram suas famílias, que mataram ou se suicidaram, livres das amarras dos hospícios. Por isso, não consigo endossar a visão romântica de Foucault, autor de A história da loucura, que pretendia soltar todos os ‘malucos’ pelo mundo. 
     Concordo que há diagnóstico em excesso no mundo moderno, que qualquer variação de comportamento é logo vista como doença tratável à base de remédios ou até internação. Mas será que, então, a loucura é um mito? Será que, caso exista, ela pode ser sempre tratada de forma branda, em CAPS (Centros de Atenção Psicossocial) e Serviços Residenciais Terapêuticos, sob responsabilidade única das famílias e vontade própria do doente? Minha experiência me diz que não, e que minimizar os riscos que esses doentes representam para si próprios e para terceiros é perigoso. Em muitos casos, ainda que extremos, a internação compulsória pode ser a única forma de salvá-los, ou proteger os demais.
     Claro que tenho medo dos ‘Simões Bacamarte’ - personagem de O Alienista, de Machado de Assis -  que acreditando ser o único detentor da razão, constatou que todos na cidade eram loucos, trancafiando-os na Casa Verde. Lá no final, porém, percebeu que o louco era ele mesmo, soltou todos e se prendeu sozinho no hospício.
      Por isso, devemos lutar a todo custo contra a arbitrariedade e o abuso de poder das autoridades. Assim como o livro acima mencionado, o filme A Troca, com Angelina Jolie, relata um caso verídico, entre tantos, do mal que isso pode causar a inocentes. Mas também não dá para dizer que no mundo são todos “malucos beleza”, como na música de Raul Seixas.
      Existem pessoas com transtornos mentais, dependentes de álcool e drogas perigosos sim, que colocam em risco a própria vida e a vida de terceiros e precisam de tratamento e de internação, e existem casos em que não há tratamento.
       Por isso, penso que nessa história, ainda precisamos achar o caminho do meio. Não são questões fáceis, por isso desconfio de respostas muito enfáticas e definitivas. Também não sou eu a detentora das respostas.
        Reconheço que a luta antimanicomial serviu para jogar luz sobre as trevas desses “hospitais” desumanos, mas realmente não consigo ir ao limite pregado por Foucault ou Szasz, de “liberar geral”, ou mesmo suspender o critério minimamente objetivo acerca da existência da loucura. Isso sim, para mim, parece coisa de maluco!
          Penso que um bom avanço seria conseguir nos livrarmos do pré-conceito que desumaniza os portadores de doença mental e nos faz entender a internação como a história inteira, quando na realidade ela é apenas uma parte da história, um momento e não um destino. Isso, por si só, já nos permitiria escrever uma nova história, com outro final.
        Porque se há alguma razão na “loucura”, em doses leves, há muita loucura na razão “absoluta.
      E para aqueles que estão pensando se advogo em causa própria? Minha resposta é:
- Talvez....
     

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