ESCRITO POR ANNATROTTAYARYD
Para
alguns, o nome Holocausto Brasileiro pode parecer, à primeira vista, algum tipo
de hipérbole marqueteira, mas não é. Trata-se, na realidade,
de um importante livro-reportagem
de autoria da jornalista Daniela Arbex, que resgata do esquecimento um dos
capítulos mais macabros da nossa história: a barbárie e a desumanidade
praticadas, durante a maior parte do século XX, no maior hospício do Brasil,
conhecido por Colônia, onde, com a conivência de médicos, funcionários e da
própria sociedade, o Estado violou, matou e mutilou dezenas de milhares de
internos.
Ironicamente, ou talvez não, tal qual os habitantes dos campos
nazistas, os internos do Colônia eram enviados para lá por trens, os
“trens de doido”, como eram chamados regionalmente, a partir de expressão
criada por Guimarães Rosa. Eram epiléticos,
alcoólatras, homossexuais, prostitutas, tímidos, meninas grávidas violentadas
por seus patrões, gente que se sentia triste, gente que se rebelava ou apenas
gente que incomodava alguém com mais poder, a maioria sem qualquer diagnóstico
médico. Também
havia crianças transferidas do Hospital de Neuropsiquiatria Infantil, em
Oliveiras, MG, todos ali largados à própria sorte, sem qualquer projeto
terapêutico ou acesso à educação formal ou informal.
Ao chegar,
perdiam seus bens, seus nomes, seus vínculos, sua voz e sua dignidade. Viviam nus, comiam ratos,
bebiam água do esgoto, dormiam ao relento, eram espancados. Nas noites geladas,
cobertos por trapos, morriam de frio. Como a morte
simbólica se dava na ocasião da internação, a morte física mal era notada.
Entre 1968 e 1980 essa fábrica de mortes se deu conta do valor de mercado dos
cadáveres dos sujeitos que, quando vivos, nada valiam; 1823 corpos foram
vendidos para suprir 17 faculdades de Medicina em todo o país. Ao menos 30
bebês foram “sequestrados” e “adotados” por “famílias de bem”.
Transformando
em palavras o que era silêncio e devolvendo nome, história e identidade àqueles
que até então eram invisíveis de todos nós, o livro Holocausto Brasileiro dói e
assusta ao mostrar as vítimas da violência dos normais. E, ao expor e resgatar
com veemência o lado sombrio dos hospícios e o uso
do poder arbitrário pelas autoridades, tantas vezes convertido em completo
abuso e descaso, nos faz estremecer.
Nas
fotografias, o livro mantém vivo o passado recente, escancara a miséria humana
e compartilha conosco o sofrimento das pessoas que resistiram e sobreviveram.
Para
quem não sabe, a prática alienante e degradante do “Hospital Psiquiátrico
Colônia” foi mantida até o início da década de 1980, quando a redemocratização
gradual do país levantou a cortina de ferro que o protegia, indignando a
opinião pública, que exigiu mudanças efetivas. A figura mais ilustre a
emprestar seu prestígio e força política na denúncia do “Hospital Psiquiátrico
Colônia” foi o psiquiatra italiano Franco Basaglia, teórico da Reforma
Psiquiátrica, que levou à abertura de todos os manicômios daquele país, em 1973.
Ele veio ao Brasil em 1979 para uma série de palestras, oportunidade em que o
psiquiatra mineiro Antônio Soares Simone o convidou para visitar uma série de
hospitais públicos daquele Estado, dentre eles, o “Colônia”.
No final de sua visita, Basaglia convocou
uma coletiva de imprensa e denunciou as condições desumanas do hospital, comparando-o
a um campo nazista. Esta entrevista teve forte repercussão nacional e
internacional e não pode ser abafada. Mesmo assim, Simone sofreu processo
dos hospitais visitados e correu o risco de ter seu diploma cassado pelo
CRM.
A
repercussão desta denúncia aumentou a pressão sobre o poder público e ficou
mais difícil impedir novas visitações, o que possibilitou a realização das
reportagens de Hiram Firmino no “Estado de Minas” e do filme Em
Nome da Razão, de Helvécio Ratton. Estes trabalhos deram condições
políticas para a Luta Antimanicomial e para a organização da Reforma
Psiquiátrica brasileira, que definiu novas diretrizes para a Saúde Mental,
superando o modelo manicomial que perdurava desde a era Vargas, num importante
esforço de redemocratização do país.
Essa
história, entretanto, ainda não acabou. A
vistoria nacional realizada em 2004 pelo Conselho Federal de Psicologia em
parceria com o Conselho Federal da OAB contabilizou 28 instituições com
internos em condições degradantes, altos índices de óbitos, cárceres e
instrumentos de coerção e tortura. Em nova vistoria realizada em 2011,
constatou-se a permanência de maus tratos e violação dos direitos humanos tanto
em hospitais quanto em Comunidades Terapêuticas.
Certamente
o respeitar o diferente, o aprender com o estranho e o tolerar os outros
representam grandes desafios para o gênero humano e para qualquer sociedade que
deseja o progresso e o desenvolvimento real.
Mas o que vimos durante anos, foram soluções
mais fáceis, no sentido de segregar aqueles que são diferentes, afastar outros
que fogem ao padrão estabelecido, a fim de proteger o conjunto de crenças
consolidadas para manutenção do estado de coisas existente.
Essas atitudes separatistas e distintivas
entre seres humanos, porém, nunca aparentaram ser efetivamente positivas para o
gênero humano. Excluir aqueles que são supostamente diferentes, apenas pelo
mero fato de que não compartilham de um mesmo padrão mental, representa uma
atitude odiosa de sociedades excludentes e preconceituosas.
Evidente que existe o outro lado, de onde é
possível fazer também um relato tão chocante e tocante, mostrando loucos que
desgraçaram a vida de inocentes, que infernizaram suas famílias, que mataram ou
se suicidaram, livres das amarras dos hospícios. Por isso, não consigo endossar
a visão romântica de Foucault, autor de A
história da loucura, que pretendia soltar todos os ‘malucos’ pelo
mundo.
Concordo que há diagnóstico em excesso no mundo moderno, que qualquer
variação de comportamento é logo vista como doença tratável à base de remédios
ou até internação. Mas será que, então, a loucura é um mito? Será que, caso
exista, ela pode ser sempre tratada de forma branda, em CAPS (Centros de
Atenção Psicossocial) e Serviços Residenciais Terapêuticos, sob responsabilidade
única das famílias e vontade própria do doente? Minha experiência me diz que não,
e que minimizar os riscos que esses doentes representam para si próprios e para
terceiros é perigoso. Em muitos casos, ainda que extremos, a internação
compulsória pode ser a única forma de salvá-los, ou proteger os demais.
Claro que tenho medo
dos ‘Simões Bacamarte’ - personagem de O
Alienista, de Machado de Assis - que acreditando ser o único detentor da razão,
constatou que todos na cidade eram loucos, trancafiando-os na Casa Verde. Lá no
final, porém, percebeu que o louco era ele mesmo, soltou todos e se prendeu
sozinho no hospício.
Por isso, devemos
lutar a todo custo contra a arbitrariedade e o abuso de poder das autoridades. Assim
como o livro acima mencionado, o filme A
Troca, com Angelina Jolie, relata um caso verídico, entre tantos,
do mal que isso pode causar a inocentes. Mas também não dá para dizer que no
mundo são todos “malucos beleza”, como na música de Raul Seixas.
Existem pessoas com
transtornos mentais, dependentes de álcool e drogas perigosos sim, que colocam
em risco a própria vida e a vida de terceiros e precisam de tratamento e de internação,
e existem casos em que não há tratamento.
Por isso, penso que
nessa história, ainda precisamos achar o caminho do meio. Não são questões
fáceis, por isso desconfio de respostas muito enfáticas e definitivas. Também
não sou eu a detentora das respostas.
Reconheço que a
luta antimanicomial serviu para jogar luz sobre as trevas desses “hospitais”
desumanos, mas realmente não consigo ir ao limite pregado por Foucault ou
Szasz, de “liberar geral”, ou mesmo suspender o critério minimamente objetivo
acerca da existência da loucura. Isso sim, para mim, parece coisa de maluco!
Penso que um bom
avanço seria conseguir nos livrarmos do pré-conceito que desumaniza os
portadores de doença mental e nos faz entender a internação como a história inteira, quando na
realidade ela é apenas uma parte da história, um momento e não um destino. Isso,
por si só, já nos permitiria escrever uma nova história, com outro final.
Porque se há alguma razão na “loucura”, em
doses leves, há muita loucura na razão “absoluta.
E para
aqueles que estão pensando se advogo em causa própria? Minha resposta é:
- Talvez....
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