segunda-feira, 3 de abril de 2017

desCasos


                                   Em novembro de 2016, Alexandra Szafir, uma advogada criminal muito bem-sucedida e conceituada, defensora intransigente da advocacia pro bono e da defesa dos mais fracos, morreu, vítima da ELA. Sim, ela era irmã gêmea de Luciano Szafir, filha de família abastada e conhecida da sociedade paulistana.

                                    Eu não a conheci. A bem da verdade, nem sabia de sua existência. Quem me contou sobre Alexandra foi uma amiga - que teve a oportunidade e o privilégio de trabalhar com ela - quando nos encontramos recentemente no velório de um amigo, que também faleceu vítima da ELA.
                                    Desde então, sua história não me saiu mais da cabeça, e, em pesquisas pela internet, fiquei encantada com tudo o que li. Alexandra é eternamente  inspiradora!
                                    Foi então que resolvi registrar sua história aqui, para que outras pessoas também possam conhecê-la.                                       
                                    Para quem não sabe, ELA, também conhecida por esclerose lateral amiotrófica, é uma doença horrorosa, sem cura da medicina, que progressiva e avassaladoramente paralisa os músculos e leva inexoravelmente à morte.
                                    Por isso, receber a notícia de ser portador de ELA é receber nas mãos, sem apelação a Deus ou à ciência, uma sentença de morte. Ao doente, primeiro vai-lhe faltar força muscular para os movimentos mais simples: segurar uma caneta, fechar um zíper, apertar a válvula sanitária, abraçar um filho. Antes disso, ou logo depois dessas manifestações, podem ocorrer também quedas do nada – está-se andando e, de repente, desaba-se. Em poucos meses, a ELA evolui à paulatina e desesperante perda da fala, e ocorresse essa perda abruptamente seria menos chocante do que acontecer por etapas: dificuldade de pronunciar algumas palavras, depois um balbuciar, na sequência um emitir de grunhidos, finalmente a ausência de qualquer som e do mexer dos lábios – com muita saliva escorrendo pelo queixo. Aí vem a impossibilidade de andar, a cabeça insustentável para um pescoço que parece feito de mola, restando ao enfermo somente o movimento dos olhos – com o corpo paralisado, são eles, os olhos, que se tornam mais vivos e inquietos, e possibilitam ao doente expressar o que lhe vai pela mente. Como um condenado à morte que caminha lúcido para o patíbulo - trajeto que dura em média, de três a cinco anos - o doente mantém o raciocínio claro e sabe tudo o que está acontecendo, porque somente os neurônios que comandam nervos e movimentos se degeneram, e assim permanece, lúcido, até que todos os músculos do corpo se petrifiquem e a morte finalmente chegue, sob a forma de parada respiratória.     
                                    A ELA ficou mais conhecida com o ‘desafio do balde de gelo’ – talvez você se lembre disso - que viralizou em 2013 na internet, e tinha por objetivo arrecadar dinheiro para a pesquisa da doença. Muitos também a identificam em razão do filme de Stephen Hawking.
                                   Alexandra foi diagnosticada com ELA em 2005. Isso, entretanto, não a impediu de continuar trabalhando arduamente, nem de receber, em 2006, o Prêmio Advocacia Solidária, oferecido pelo TJ/SP, IDDD e Instituto Pro Bono para homenagear advogados que trabalham gratuitamente em causas sociais. Já em estágio avançado da doença, ela ainda escreveu dois livros: “desCasos, uma advogada às voltas com o direito dos excluídos”, publicado em 2010, pela Editora Saraiva, e “desCasos 2”, lançado em 2014, cuja renda, no lançamento, foi toda revertida para pesquisar a cura da ELA.
                                  As histórias são o resultado de sua experiência pessoal, ao participar, nos anos 90, de uma ação inovadora no Brasil, por meio do Instituto de Defesa do Direito de Defesa, de mutirões em cadeias.                    
                       Segundo relatos, Alexandra escreveu o primeiro livro, “desCasos”, com seu nariz ‘intrometido’ e a ajuda de um software, instalado em seu notebook por sua fonoaudióloga, que a possibilitava mexer o mouse. Já o segundo, ela escreveu com o piscar dos olhos, o único movimento que então lhe restava.
                      São livros pequenos de tamanho, mas enormes em humanidade, que retratam, em uma prosa fácil e convidativa, a busca de Alexandra pela justiça e sua enorme determinação em desfazer injustiças.
                        Corajosos, os livros não só escancaram as entranhas da Justiça Penal brasileira, expondo suas mazelas, como também colocam o dedo na ferida,  mostrando a inoperância ou indiferença alheias e a truculência daqueles que Michel Foucault chamava de “pequenos ortopedistas da moral”, o que dói um bocado.
                        São falhas processuais, abusos de poder, tortura da polícia judiciária. Há juízes soberbos, promotores insensíveis, advogados omissos. De tudo um pouco se encontra nos causos que ela nos conta de forma didática e por vezes sarcástica, permitindo até mesmo aos leigos mergulhar, sem dificuldade, no horizonte penal.
                        E, ao mostrar os descaminhos da justiça, ela nos convida à reflexão. Não somente sobre os problemas da Justiça brasileira, mas também sobre a atuação de todas as pessoas envolvidas com o direito e o nosso verdadeiro compromisso com a justiça.
                        Nas palavras de Leopoldo Stefanno L. Louveira, “A obra com a qual o leitor se depara fatalmente o fará pensar sobre a famosa frase “ver sem enxergar” as não pessoas, os excluídos, os esquecidos que gravitam às bordas do meio social. O recado é claro: se cada um voltasse o olhar para o “outro”, talvez muitos dos casos/descasos aqui contados pudessem ter sido evitados...”
                        É bem verdade, muitos dirão que a maioria dos excluídos de Alexandra mereceram as sanções que receberam, pelos males que infligiram a outros. Entretanto, se é verdade que não podemos esquecer a dor das vítimas que sofreram com violações e se sente impotentes, também não podemos deixar de ver os esquecidos ou maltratados nos porões do sistema criminal, vítimas de diferentes injustiças. Não existem cidadãos mais ou menos humanos que outros. Além disso, ninguém pode ser mais responsável do que as sanções que lhes são atribuídas.  
                        De outro lado, para discutirmos sobre a justiça que queremos, precisamos antes, ver e mostrar a justiça que não queremos, e é exatamente essa que os livros de Alexandra nos mostram, nos permitindo aprender com olhares alheios, que flagram aquilo que muitas vezes os nossos próprios não são capazes ou não estão dispostos a enxergar.         
                                    Mas, se os casos e descasos impressionam, o difícil é saber, ao final, o que comove mais: se são as histórias de descasos do sistema criminal ou esforço incomum da autora para contá-las.
                                  Verdadeiro exemplo de humanidade e superação, Alexandra Szafir, em suas entrevistas que circulam pela internet, nos conta o segredo: “Não tenho vocação para ser infeliz...”.
                                  E nos dá a dica: “...acho que tenho um mecanismo inconsciente de autoproteção, porque não fico pensando no que eu não posso fazer, simplesmente faço o que posso.” (blog deficiente Ciente)                                                                                     
            Atualmente há, no Brasil, cerca de 14 mil pessoas com ELA, e, no mundo, são aproximadamente 400 mil os que desenvolveram a doença.     
            Não obstante, para o tratamento da doença ainda existem muito poucos profissionais capacitados e uma complicação imensa para a realização do diagnóstico, o que leva a pessoa a peregrinar por cerca de um ano, de consultório em consultório, de laboratório em laboratório, até que a doença seja identificada em diagnóstico por exclusão, o que é muito tempo, se considerarmos que o período de vida médio é de três a cinco anos. Além disso, o serviço de fisioterapia em casa, essencial quando a paralisia se agrava, não é oferecido pela rede pública e são poucos os planos de saúde que o contemplam.
            Para representar os pacientes nessa luta e tentar fazer com que ela ganhe força e visibilidade, existe a Associação Brasileira de Esclerose Lateral Amiotrófica, que faz o que pode, mas não ainda tem força política suficiente.
            A luta é árdua e longa. Assim como ocorreu com o câncer e a Aids - enfermidades cujos diagnósticos representavam a morte e que hoje são, na maioria dos casos, controláveis, o que se espera é que a ciência também golpeie a Esclerose Lateral Amiotrófica. Para o futuro, a grande esperança são as pesquisas com células-tronco, estruturas versáteis capazes de se transformar em qualquer tecido do corpo.
                                 Esse post é o registro singelo da minha admiração eterna à guerreira Alexandra Szafir, que nos inspira a continuar lutando, sem nunca perder a indignação com aquilo que está errado. #mulher incrível#gentequefaz#

 

 

 

0 comentários

Postar um comentário