ESCRITO POR ANNATROTTAYARYD
Arroz de Palma é um livro de receitas de como
conviver em família, que nos traz as delícias e maravilhas sobre laços de
família, pessoas e muitas vidas. Ele faz
rir, chorar e ir longe com a imaginação, mas acima de tudo, é um livro real,
palpável, que retrata a família exatamente como tem que ser: possível, humana e
cheia de contradições.
Ele narra a saga de
uma família em busca de um futuro melhor, que no curso da vida vai superando
diversas dificuldades. Nos cem anos em que acompanhamos suas vidas, irmãos
brigam e fazem as pazes. Uns casam e são felizes, outros se separam. Os filhos
ora preocupam, ora dão satisfação. Tudo, sempre acompanhado pelo arroz jogado
no casamento dos patriarcas José Custódio e Maria Romana, em 1908, grão que
serve de fio condutor desta história, como migalhas de pão jogadas no labirinto
da memória.
Não importa se sua
família é numerosa como a do livro ou não, se você tem 80 ou 20 anos, é
impossível não se identificar com ele.
O autor, Francisco José Alonso Vellozo Azevedo, é dramaturgo, roteirista cinematográfico, poeta e
ex-diplomata, além de um exímio mestre em brincar com os múltiplos sentidos de
cada vocábulo e a forma metafórica de se enxergar a rotina. Por isso, o livro é
cheio de construções cativantes, poéticas e metáforas criativas, que nos
instigam a refletir sobre extremos e relacionamentos.
Como nos ensina o
autor, através de um de seus personagens, Família boa é à “Moda da Casa”, e
“quando acaba, nunca mais se repete”, para nos mostrar, no curso da história, com
imensa delicadeza e sensibilidade o quão importante é voltarmos às nossas raízes
- não aquelas que encontramos ao olhar para trás, mas aquelas que só achamos
quando olhamos dentro e bem lá no fundo...
Com toda a certeza, Arroz de Palma é um daqueles livros
para pegar com respeito, saborear com calma, ler com a alma e guardar com
carinho.
E se você ainda não
está convencido do que estou falando, transcrevo abaixo um
trecho do próprio livro, que já circula livremente pela internet, para não
restar qualquer dúvida. Fica a dica.
“ARROZ DE PALMA”
FRANCISCO AZEVEDO
“Família é prato difícil de preparar. São muitos
ingredientes. Reunir todos é um problema, principalmente no Natal e no Ano
Novo. Pouco importa a qualidade da panela, fazer uma família exige coragem,
devoção e paciência. Não é para qualquer um. Os truques, os segredos, o
imprevisível. Às vezes, dá até vontade de desistir. Preferimos o desconforto do
estômago vazio. Vêm a preguiça, a conhecida falta de imaginação sobre o que se
vai comer e aquele fastio. Mas a vida, (azeitona verde no palito) sempre arruma
um jeito de nos entusiasmar e abrir o apetite. O tempo põe a mesa, determina o
número de cadeiras e os lugares. Súbito, feito milagre, a família está servida.
Fulana sai a mais inteligente de todas. Beltrano veio no ponto, é o mais
brincalhão e comunicativo, unanimidade. Sicrano, quem diria? Solou, endureceu,
murchou antes do tempo. Este é o mais gordo, generoso, farto, abundante. Aquele
o surpreendeu e foi morar longe. Ela, a mais apaixonada. A outra, a mais
consistente. E você? É, você mesmo, que me lê os pensamentos e veio aqui me
fazer companhia. Como saiu no álbum de retratos? O mais prático e objetivo? A
mais sentimental? A mais prestativa? O que nunca quis nada com o trabalho? Seja
quem for, não fique aí reclamando do gênero e do grau comparativo. Reúna essas
tantas afinidades e antipatias que fazem parte da sua vida. Não há pressa. Eu
espero. Já estão aí? Todas? Ótimo. Agora, ponha o avental, pegue a tábua, a
faca mais afiada e tome alguns cuidados. Logo, logo, você também estará
cheirando a alho e cebola. Não se envergonhe de chorar. Família é prato que
emociona. E a gente chora mesmo. De alegria, de raiva ou de tristeza.
Primeiro cuidado: temperos exóticos alteram o sabor
do parentesco. Mas, se misturadas com delicadeza, estas especiarias, que quase
sempre vêm da África e do Oriente e nos parecem estranhas ao paladar, tornam a
família muito mais colorida, interessante e saborosa.
Atenção também com os pesos e as medidas. Uma
pitada a mais disso ou daquilo e, pronto, é um verdadeiro desastre. Família é
prato extremamente sensível. Tudo tem de ser muito bem pesado, muito bem
medido. Outra coisa: é preciso ter boa mão, ser profissional. Principalmente na
hora que se decide meter a colher. Saber meter a colher é verdadeira arte. Uma
grande amiga minha desandou a receita de toda a família, só porque meteu a
colher na hora errada.
O pior é que ainda tem gente que acredita na
receita da família perfeita. Bobagem. Tudo ilusão. Não existe Família à Oswaldo
Aranha; Família à Rossini; Família à Belle Meunière; Família ao Molho Pardo, em
que o sangue é fundamental para o preparo da iguaria. Família é afinidade, é “à
Moda da Casa”. E cada casa gosta de preparar a família a seu jeito. Há famílias
doces. Outras, meio amargas. Outras apimentadíssimas. Há também as que não têm
gosto de nada, seriam assim um tipo de Família Dieta, que você suporta só para
manter a linha. Seja como for, família é prato que deve ser servido sempre
quente, quentíssimo. Uma família fria é insuportável, impossível de se engolir.
Enfim, receita de família não se copia, se inventa.
A gente vai aprendendo aos poucos, improvisando e transmitindo o que sabe no
dia a dia. A gente cata um registro ali, de alguém que sabe e conta, e outro
aqui, que ficou no pedaço de papel. Muita coisa se perde na lembrança.
Principalmente na cabeça de um velho já meio caduco como eu. O que este
veterano cozinheiro pode dizer é que, por mais sem graça, por pior que seja o
paladar, família é prato que você tem que experimentar e comer. Se puder
saborear, saboreie. Não ligue para etiquetas. Passe o pão naquele molhinho que
ficou na porcelana, na louça, no alumínio ou no barro. Aproveite ao máximo.
Família é prato que, quando se acaba, nunca mais se repete.”
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