Numa sociedade sob o império econômico e sob o domínio do medo,
da insegurança e do egoísmo, o que se observa por entre os escombros de
civilidade que ainda restam é um mundo cada vez menos humano e mais
bárbaro.
Um jovem, acusado de assalto, é acorrentado nu
a um poste com uma trava de bicicleta e tem sua orelha cortada, no Rio de
Janeiro. Outro ladrão é acorrentado em Itajaí - Santa Catarina. Em Goiânia, um
adolescente é espancado pela população após um furto. Em Teresina - Piauí, um
suspeito de assalto é amarrado e tem seu rosto posto em um formigueiro. No
interior de Minas Gerais, um rapaz de dezoito anos, foi amarrado a um poste e
açoitado com fios de energia elétrica pela população.
E a “justiça com as próprias mãos” não para.
Nos últimos dois meses três pessoas inocentes foram assassinadas em
“linchamentos coletivos”, acusadas de crimes não comprovados. Alailton Ferreira
e Marcelo Pereira da Silva foram mortos em espancamentos coletivos, acusados de
estupro. E o caso mais recente é o do Guarujá, onde Fabiane Maria de Jesus, de
33 anos, foi espancada até a morte pela população, depois de ter sido
identificada como a suposta sequestradora de crianças sacrificadas em rituais de
“magia negra’ em retrato falado da página de notícias do Facebook ‘Guarujá
Alerta’.
Sem investigações, sem leis, sem direitos, nem
humanos. Apenas julgamentos súbitos praticados por indivíduos engolfados em sua
razão e dominados pela vontade coletiva irracional de ódio, praticados em
verdadeiros rituais de vingança e desumanização daqueles cuja conduta é
socialmente imprópria, aos quais não é dado tempo nem oportunidade para provar
ou não a sua inocência.
Assistimos atônitos à onda crescente de
barbárie e nos comovemos com tamanha brutalidade, preocupados com o retrocesso
civilizatório. Sabemos que eles não são os primeiros e fatalmente não serão as
últimas vítimas, nem da violência, nem do descaso nem da ignorância. Mesmo
assim, a indignação não vem.
A desigualdade que se perpetua no concreto da
vida cotidiana e que começa e persiste na cabeça de cada um, legitima a ideia de
que a vida de uns vale menos do que a de outros, de que a vida dos mesmos de
sempre vale menos do que a dos mesmos de sempre. No país das indignações
seletivas, onde a tortura é consentida, temos por hábito aplaudir soluções
arbitrárias contra um caos legitimado.
Afinal, o Estado é omisso. A polícia é
desmoralizada. A Justiça é falha. São todos marginais e também vagabundos. Não
podemos mais conviver com a impunidade. No fundo, o Brasil que pede direitos
humanos apenas para humanos direitos se sente vingado.
E é muito mais fácil dividir o mundo entre
bons e maus, mocinhos e bandidos e transformar os problemas humanos em problemas
dos políticos e dos donos do poder econômico, e não de todos nós.
Assim esquecemos o óbvio em nome da
conveniência. E motivados pelo discurso do medo e da insegurança nos permitimos
perder a única coisa que nos diferencia no mundo animal – a razão - para nos
tornarmos o pior e mais cruel lobo de nós mesmos.
O problema é que é justamente nesse eixo entre
o bem o e mal que giram os preconceitos, as discriminações, os arbítrios, as
violências públicas. E é exatamente essa visão maniqueísta que permite que o
nosso país continue dividido entre aqueles que são cidadãos e têm direitos e
aqueles que não têm nenhum direito.
Naturalmente o instinto de preservação da
espécie se transmuda em preservação apenas dos humanos bons, geralmente
pertencentes ao clico econômico mais qualificado, assemelhados ora por certas
características genéticas comuns, ora pela posse de certos signos do
pertencimento, para nos tornarmos estranhos entre os iguais.
Mas se olharmos atentamente, veremos que na
sua essência, o que os linchamentos praticados sugerem é um quadro de mudanças
sociais patológicas, na medida em que, nos recantos escuros de um cenário urbano
que se expande deteriorado, representam a afirmação de valores negativos, que
não se inserem no elenco de concepções positivas a respeito da constituição da
humanidade do homem, com respeito aos procedimentos legais, institucionais e
racionais de aplicação da justiça, da liberdade, responsabilidade e
cidadania.
Nesse contexto também não podemos esquecer
nossas raízes históricas que fazem com que as maiores vítimas de violência no
Brasil sejam os negros e pobres. Muito menos podemos fechar os olhos para o
cenário de urbanização inconclusa que vivemos, insuficiente, patológica e
excludente, de relações sociais essencialmente mediadas por privações.
É preciso urgentemente nos olharmos no espelho
com coragem suficiente para encarar a face feia da natureza humana e pararmos de
pedir vingança contra o mal por nós mesmos causado.
Porque somente assim podermos enxergar apenas
“nós” na humanidade, e não “nós” como algo contraposto a “eles”.
Em termos jurídicos, a condição de humanidade
decorre, em essencial medida, da vida em sociedade, mais especificamente, da
teia de comunicações que os seres humanos, nas suas relações sociais, mantêm ou
podem manter com outros seres humanos. Assim, não faz qualquer sentido buscar
compreender a dignidade da pessoa humana numa imagem de ser humano como ser
isolado de tudo o mais, com base numa filosofia que tem a pretensão de
interpretar o homem despido de sua socialidade, como
coisa-bastante-em-si.
A dignidade não reside apenas na pessoa,
mas também e principalmente na interação entre pessoas. O respeito, como bem
disse Chaplin, no seu excepcional discurso final de “O Grande Ditador”: “O
reino de Deus está dentro do homem — não de um só homem ou grupo de homens, mas
de todos os homens.”
Por isso, que possamos seguir em frente,
levando conosco uma única certeza: que o futuro da humanidade depende da
intensidade da humanidade.
Pronto falei.
Esse texto foi publicado hoje (28/05/2014) no
site do Correio da Cidadania.
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