Quando li essa reportagem da Revista Marie Claire
sobre os testemunhos das mulheres que ousaram combater a Ditadura Militar,
fiquei imaginando o quanto deve ter sido duro e doído para elas abrirem os seus
baús e exporem publicamente suas vidas, com todos esses pormenores, para nos contar
a nossa história. Por isso, não sosseguei enquanto não o encontrei para divulgá-lo
aqui.
De todas elas, nessa vida tive a oportunidade
de conhecer a Amélia Teles, que há anos está à frente do projeto Promotoras Legais
Populares, que busca capacitar mulheres, líderes comunitárias, para o pleno
exercício da cidadania. À você e a tantas outras que continuam lutando
bravamente pelas causas feministas, deixo aqui registrado meu orgulho, respeito e admiração.
Infelizmente, tem muita gente contra
a Comissão Nacional da Verdade, constituída para investigar violações de
direitos humanos ocorridas entre 1946 e 1988, no Brasil, por agentes do estado.
E por incrível que pareça, tem também aqueles que esbravejam contra os próprios
direitos humanos, como se eles não dissessem respeito aos direitos de todos
nós.
Pois se eles se assustam apenas com a violência urbana e não se importam e nem têm medo dos desmandos do Estado, eu tenho. E essa reportagem é a prova viva do por que devemos estar sempre atentos e nos importar sempre.
23/09/2013
06h01 - ATUALIZADA EM: 24/09/2013 17h35 - por Mariana Sanches
Os testemunhos das
mulheres que ousaram combater a Ditadura Militar
A Comissão Nacional da Verdade, criada para
elucidar crimes cometidos durante o período acaba de completar um ano. Antes de
seu encerramento em 2014, tem como uma de suas principais missões contar o que
sofreram as mulheres que foram contra o regime. São brasileiras hoje na faixa
dos 60 anos, como as ouvidas por Marie Claire: vítimas de estupros, choques nos
mamilos, ameaças aos filhos, abortos...
DA ESQ. PARA A DIR.: AMÉLIA TELES, ANA MARIA
ARATANGY E CRIMÉIA DE ALMEIDA (Foto: FABIO BRAGA E TADEU BRUNELLI)
Em pé sobre
uma cadeira, nua, encapuzada e enrolada em fios, Ana Mércia Silva Roberts,
então com 24 anos, esforçava-se para manter os braços abertos, sustentando uma
folha de papel presa entre os dedos de cada mão. Ela estava naquela posição
havia horas. A cada vez que o cansaço lhe fazia baixar minimamente os braços, um
choque elétrico percorria todo seu corpo. E as gargalhadas preenchiam a
pequena sala. Eram vários homens, talvez oito, talvez dez. Cada um com um
rosto, uma história, uma vida. “Um dos meus torturadores poderia ser meu avô,
um senhor de gravata-borboleta para quem eu daria lugar no ônibus; o outro era
um loiro com chapéu de caubói. Havia um homem com jeito de pai compreensivo que
chegou a me dar um chocolate, e um jovem bonito com longos cabelos escuros, que
andava de peito nu, ostentando um crucifixo, de codinome Jesus Cristo”, afirma.
O rosto desses
algozes, integrantes da repressão militar, e as cenas do dia em que teve de ser
estátua viva perante eles são parte das lembranças que Ana Mércia, hoje
66, guarda de quase três meses de prisão no DOI-Codi e no Dops, dois
centros paulistanos de tortura e prisão de oposicionistas ao regime militar,
instaurado sete anos antes. Integrante do Partido Operário Comunista, ela
esteve nos porões da ditadura em 1971, mesma época em que o País vivia a
prosperidade do “milagre econômico” e o ufanismo alimentado pela
conquista da Copa de 70 e por slogans como “Brasil, ame-o ou deixe-o”.
Nos meses em que ficou encarcerada, seu corpo e mente foram massacrados de
diversas formas. Mas não é ao descrevê-las que seus olhos ficam marejados.
“Estranhamente, eu não me lembro de quase nada daquelas semanas, meses. Fiz
terapia, mas não consigo recuperar esses trechos da minha vida. O que
mais me dói é isso. Vários pedaços de mim e da minha existência não me
pertencem, ficaram com eles (os militares)”. Ana Mércia é uma mulher com pouca
memória das torturas daqueles porões. E é também uma metáfora do próprio
Brasil, que segue desmemoriado das histórias do regime militar (1964 a 1985) quase
30 anos depois do fim da ditadura. A diferença entre Ana Mércia e o Brasil
é que ao País foi dada a chance de recuperar e registrar os detalhes de sua
história. É essa a missão da Comissão Nacional da Verdade, criada pela
presidenta Dilma Rousseff (ela mesma vítima de torturas do Estado) e que tornou
acessíveis uma série de papéis até então secretos. Desde maio de 2012, 19
milhões de páginas de documentos foram retirados de seus arquivos e estão em
análise, e cerca de 350 pessoas foram ouvidas. É um movimento delicado e, para
muitos, atrasado. Até então, o Brasil já havia debatido por anos como lidar
com a violência da época.
INTEGRANTES DO GRUPO "TEATRO EM GREVE CONTRA A
CENSURA" PROTESTAM NO RIO DE JANEIRO EM FEVEREIRO DE 1968 (Foto: Gonçaves
(CPDOCJB))
A Ordem dos
Advogados do Brasil chegou a pedir, em 2008, a revisão da Lei da Anistia, que
perdoava todos os “crimes políticos” e beneficiava também torturadores, mas
teve o pedido negado pela Justiça. Da sua parte, grupos militares se opunham à
quebra de sigilo e à própria Comissão por temer uma caça às bruxas. Foi depois
de muito diálogo que se chegou à fórmula de um grupo de trabalho com ênfase na
transparência: a Comissão da Verdade pode acessar qualquer documento que
considerar importante e tem o poder de convocar pessoas para depor, mas não
de julgá-las. Do primeiro ano de trabalho, emergiram as conclusões de que a
tortura começou em 1964, pouco depois do golpe, e ocorreu em pelo menos sete
estados diferentes. Nesse pouco tempo, o Estado brasileiro admitiu que os
assassinatos do deputado Rubens Paiva e do jornalista Vladimir Herzog foram
obra de seus agentes, e descortinou o recrutamento e o extermínio de tribos
indígenas da Amazônia pelos militares.
Tudo isso dá
contornos mais nítidos à história recente do País, mas o grupo ainda tem muito
a contar até dezembro de 2014, quando os trabalhos serão encerrados. Uma das
principais incumbências da Comissão é esclarecer a participação das mulheres
na resistência à ditadura e as torturas a que foram submetidas.
“Acreditamos que as mulheres sofreram violências específicas, sexuais,
motivadas também por machismo, que buscavam destruir a feminilidade e a
maternidade delas”, afirma Glenda Mezarobba, uma das coordenadoras do grupo
Ditadura e Gênero, que investiga o assunto na Comissão da Verdade. Os trabalhos
ainda não possuem conclusões definitivas, mas há fortes indícios do que pode
ter acontecido às brasileiras durante as duas décadas de regime militar. “Hoje,
trabalhamos com um número de 500 mortos pela ditadura, 50 deles seriam
mulheres. Mas sabemos que os dois números estão subestimados”, afirma Glenda,
empenhada em refazer a estatística.
CENA COMUM
EM 1968: A CAVALARIA DS POLÍCIA MILITAR TOMA A AVENIDA SÃO JOÃO, NO CENTRO DE
SÃO PAULO (Foto: Acervo Memorial da Resistência de São Paulo)
A quantidade
de processos reclamando anistia sugere que esse número é muito maior. Desde
2001, o Ministério da Justiça recebe pedidos de indenização de brasileiros que,
de alguma maneira, tiveram a vida marcada pelo regime militar. São parentes e
vítimas de violência ou pessoas que, por motivo exclusivamente político,
ficaram impedidas de trabalhar. Hoje, o órgão contabiliza mais de 73 mil
pedidos. Mais de 40 mil já foram aceitos. As mulheres foram fundamentais no
combate ao regime em todas as suas fases. Seu engajamento nos movimentos pela
anistia dos presos políticos, que muitas vezes culminaram com passeatas
exclusivamente femininas, são a parte mais conhecida dessa militância. Mas,
nas organizações de esquerda Ditadura, elas também foram importantes. Guardavam
armas e abrigavam militantes (aliás eram preferidas para essa função, pois
levantavam menos suspeitas), traduziam jornais comunistas estrangeiros,
participavam das aulas de doutrinas ideológicas, da elaboração dos planos de
assaltos e sequestros, tinham aulas de tiro e muitas foram a Cuba fazer
curso de guerrilha. Nas organizações clandestinas, chegaram a dirigentes.
“Era preciso que houvesse uma mulher em cada
esconderijo, para manter a aparência de uma casa normal”, afirma Glenda. Elas
também agregavam uma faceta afetiva e familiar às organizações, muitas foram
mães na clandestinidade ou na cadeia. Na descrição feita pela psicóloga
argentina, naturalizada brasileira, Maria Cristina Ocariz, a mulher militante
parece a expressão viva da frase do revolucionário argentino Ernesto Che
Guevara: “hay que endurecerse, pero sin perder la ternura jamás”. “Elas
tinham a mesma garra que os homens. Perdiam companheiros, assassinados pelo
regime, e ainda assim seguiam na luta, não por frieza, mas por convicção
ideológica de poder construir um mundo melhor para seus filhos.” Cristina, que
hoje coordena a Clínica do Testemunho Instituto Sedes Sapientiae em São Paulo,
um serviço que oferece espaço para reparação psicológica aos afetados por
ditaduras, fez parte da resistência aos militares argentinos antes de se exilar
no Brasil. Na juventude, na década de 70, ela deixava seu bebê de 1 mês nos
braços da mãe, em Buenos Aires, ia a manifestações e corria para casa a
tempo de amamentar seu filho. Quando eram presas, as mulheres tinham pela
frente não apenas a tortura, mas também o sexismo e a violência sexual. “É
claro que ser mulher fazia diferença. Porque ainda que os homens torturados
também tivessem de ficar nus, eles tiravam as roupas na frente de outros
homens. A mulher ficava nua diante dos olhos cobiçosos e jocosos daqueles
homens, essa era a primeira violência”, afirma Tatiana Merlino,
organizadora do livro "Luta, Substantivo Feminino", publicado em 2010
pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos, que descreve o assassinato de 45
mulheres militantes.
MANIFESTAÇÃO DE MULHERES CONTRA A VISITA DO
ATIRADOR ARGENTINO JORGE VIDELA A SÃO PAULO, EM 1980 (Foto: Material Brasil
Nunca Mais do Arquivo Edgard Leuenroth/Unicamp)
NUDEZ E
TORTURA
“A primeira
coisa que eles fizeram quando entrei na sala de depoimento foi me mandar
tirar a roupa, eu já fiquei apavorada”, afirma Ana Maria Aratangy, de 66
anos. “Eu não esperava por aquilo. Eu mesma fui tirando a roupa, achei que era
melhor do que deixá-los arrancar. Acho que foi pior do que as torturas que
vieram depois”. Ana Maria era membro do Partido Operário Comunista quando foi
presa, aos 24 anos, e estava grávida de algumas semanas, mas não sabia.
Estudante do sexto ano de medicina, ela afirma que sua militância era tímida: guardava
duas armas em casa e tinha leituras consideradas
subversivas. Nem sequer conhecia os líderes do POC. Até por isso, não teve muito a dizer quando vieram os choques nos mamilos e os tapas no rosto. Tampouco pôde conter os gritos. Enquanto gritava, sua mãe, que havia sido presa junto com ela, ouvia da sala ao lado. Ana Maria só saiu da prisão aos cinco meses de gestação. Sua filha, hoje, tem 41 anos.
subversivas. Nem sequer conhecia os líderes do POC. Até por isso, não teve muito a dizer quando vieram os choques nos mamilos e os tapas no rosto. Tampouco pôde conter os gritos. Enquanto gritava, sua mãe, que havia sido presa junto com ela, ouvia da sala ao lado. Ana Maria só saiu da prisão aos cinco meses de gestação. Sua filha, hoje, tem 41 anos.
“Depois de nos colocarem nuas, eles
comentavam a gordura ou a magreza dos nossos corpos. Zombavam da
menstruação e do leite materno. Diziam ‘você é puta mesmo, vagabunda’”, afirma
Ana Mércia. As violências que seguiam incluíam, em geral, choques nas
genitálias, palmatórias no rosto, sessões de espancamento no pau de arara,
afogamentos ou torturas na cadeira do dragão, cujo assento era uma placa de
metal que dava descargas elétricas no corpo amarrado do prisioneiro. Mas com as
mulheres era diferente. “Havia uma voracidade do torturador sobre o corpo da
torturada”, afirma a psicóloga Maria Auxiliadora Arantes, cuja tese de
doutorado sobre tortura no Brasil será publicada este ano. “O corpo nu da
mulher desencadeia reações no torturador, que quer fazer desse corpo um objeto
de prazer.”
PASSEATA DE MULHERES NO LARGO CARIOCA À CINELÂNDIA,
NO RIO DE JANEIRO EM 1983 (Foto: Almir Veiga (CPDOCJB))
Foi
exatamente o que viveu Ieda Seixas, de 65 anos. Aos 23, ela foi presa por causa
da militância do pai, operário. Demorou muito tempo para ser capaz de relatar o
que passou. E, quase 40 anos depois, não consegue conter as lágrimas ao
descrever: “Levaram-me para um banheiro durante a noite, no DOI-Codi, eram
uns dez homens. Fiquei sentada em um banco com dois deles me comprimindo,
um de cada lado. Na minha frente, em uma cadeira, sentou um cara que chamavam
de Bucéfalo. Ele me dava muito tapa na cara, a minha cabeça virava de um lado
para o outro, mas eu nem sentia, porque um dos homens que estava sentado ao meu
lado não parava de passar a mão em mim, colocou os dedos em todos os meus
orifícios. Era tão terrível que eu pedia: ‘Coloquem-me no pau de arara’. Mas
aquele homem dizia: ‘Não, gente. Não precisa levar essa aqui para o pau de
arara. Comigo ela vai gozar e vai falar’.
Todos riam.
Naquela noite, se eu tivesse tido meios, teria tentado me matar.” O suicídio
pode ter sido o destino de outras mulheres que não conseguiram suportaram a
violência sexual. Segundo Luci Buff, da Comissão da Verdade, começam a aparecer
informações de que até mesmo freiras teriam sido estupradas por militares.
Amélia Teles, de 68 anos, relata que não foi capaz de conter o vômito ao ver
que o torturador ejaculava sobre seu corpo nu e ferido, depois de
masturbar-se olhando para a vítima, amarrada na cadeira do dragão. Militante do
Partido Comunista, ela tinha dois filhos, de 5 e 4 anos, quando foi presa, em
1972. O assédio sexual do torturador não foi a pior parte. Em um dos dias na
prisão, depois de ser exaustivamente torturada Amélia viu a porta da sala se
abrir e seus dois filhos entrarem. “Foi a pior coisa do mundo. Eu, amarrada
(nua) na cadeira do dragão, sem nem poder abraçá-los. A minha filha me
perguntou: ‘Mãe, por que você está azul?’. Eram as marcas dos hematomas, do
sangue pisado, espalhados pelo meu corpo”, afirma Amélia. “Eles foram claros
comigo: para manter meus filhos vivos, eu teria que colaborar com eles.”
Os dois filhos hoje são adultos. Passaram por terapia e guardam apenas
fragmentos de memória de sua visita ao DOI-Codi. Nenhum quis ter filhos. Amélia
credita esse fato ao trauma na infância.
Agredir
crianças para atingir a mãe não era um recurso excepcional. Nem sequer as mulheres grávidas eram poupadas. Em 1974, com uma barriga
de seis meses de gestação, a militante do grupo revolucionário MR-8 Nádia
Nascimento foi presa, junto com o seu companheiro, em São Paulo. “Já foram logo
me dizendo que filho de comunista não merecia nascer. Arrancaram minha roupa na
frente do meu companheiro, que já estava muito machucado pela tortura, e
perguntavam se ele queria que me torturassem, diziam que dependia dele. Ameaçaram
me estuprar na frente dele, mesmo grávida. Até que, em um dado momento, me
colocaram na cadeira do dragão. Ali, comecei a sangrar por causa dos choques
e perdi meu filho”, conta Nádia, que teve uma série de complicações médicas
decorrentes do aborto provocado e da falta de cuidados hospitalares. A criança
se chamaria Lucas e hoje teria 39 anos de idade.
A LÍDER ESTUDANTIL CATARINA MELONI EM PASSEATA.
MAIS TARDE, ELA ESCREVERIA O LIVRO"1968: O TEMPO DAS ESCOLHAS" (Foto:
Jesus Carlos (Imagem Global)
Também presa
aos seis meses de gestação, Criméia de Almeida, de 67 anos, conseguiu manter
seu filho na barriga, a despeito das torturas. Quando a bolsa estourou,
na cela solitária que ela ocupava em uma carceragem do exército em Brasília, dezenas
de baratas que habitavam o lugar começaram a subir por suas pernas,
alvoroçadas por se alimentar do líquido amniótico. Embora pedisse ajuda, teve
de esperar horas até ser transferida a um hospital. Lá, a ex-guerrilheira do
Araguaia, que havia trabalhado como parteira na Amazônia, teve as pernas e
os braços amarrados. “Quando o bebê nasceu, já o levaram para longe de mim.
E o médico me costurou sem anestesia, eu gritava de dor. Daí passaram a usar
meu filho para me torturar. Passavam dois dias sem trazê-lo para mamar. Quando
ele vinha, estava com soluço, magro, morto de fome. Ele nasceu com quase
3,2 kg. Mas com um mês de vida pesava apenas 2,7 kg. Na infância, ele tinha
muitos pesadelos, chegou a ter convulsões. É claro que ficaram traumas em todos
nós. Quando eu estava presa e ouvia o tilintar de chaves na carceragem, que
significava que alguém seria torturado, o bebê começava a soluçar dentro do
útero. Hoje, aos 40 anos, João Carlos ainda soluça toda vez que fica
estressado”, afirma Criméia.
Ele não
conheceu o pai, André Grabois, que até
hoje é considerado desaparecido político. Criméia não teve a chance de enterrar
seu companheiro. É provável que André tenha sido assassinado pelos militares
durante a guerrilha do Araguaia – movimento comunista na região amazônica
combatido pelo governo entre 1972 e 1974, no qual acredita-se que os militares
tenham lançado bombas de Napalm, o mesmo químico usado no Vietnã, de
acordo com mais uma revelação recente da Comissão da Verdade. Sorridente até
ali, em um evento sobre educação internacional para mulheres, a ministra das
mulheres, Eleonora Menicucci, ganhou um semblante pesado ao ser indagada por
Marie Claire sobre sua história na ditadura. Quando foi presa, em 1971, tinha
apenas 22 anos e uma filha de 1 ano e 10 meses. Para forçála a dar informações
de sua atividade política, os militares colocaram a menina, Maria, apenas de
fralda, no frio. A criança chorava e os torturadores ameaçavam dar choques
nela. Ieda Seixas, que foi aprisionada na mesma cela que a atual ministra logo
depois dessa sessão de tortura, afirma: “A Eleonora andava como um animal
enjaulado, de um lado para o outro, e dizia ‘minha filha, minha filha’.
Tinha os olhos esbugalhados, passava a mão pelos cabelos com desespero, parecia
que ia explodir. Era mais do que estar transtornada, ela estava em estado de
choque”.
Sobre a
experiência, a ministra diz: “A Maria superou tudo e hoje é uma vencedora. Eu
também superei. Tive outro filho que me deu a certeza de que o que fiz foi
correto e me mostrou que eu ainda era capaz de ser mãe mesmo depois de todas as
torturas que sofri. Mas, ainda assim, relembrar isso é muito sofrido.
Acho que cada um resolve à sua maneira. A Maria aprendeu a lidar com isso com
mais liberdade e menos sofrimento. Eu, tudo o que tinha de falar, eu falei.
Porque o pior não é a tortura física, mas a psicológica, a ameaça. As ameaças
que faziam comigo de torturar a Maria na minha frente eram tão pesadas que
talvez fossem mais fortes do que a própria tortura em si”.
AS GRADES DO DOPS (Foto: Material Brasil Nunca Mais
do Arquivo Edgard Leuenroth/Unicamp)
O FUTURO
É com essa
mesma memória que o Brasil tenta aos poucos lidar. A abertura dos arquivos e
os depoimentos, que pode resultar em processos contra os torturadores, não são
as únicas manifestações. No cinema, "Hoje", filme da diretora
Tata Amaral, mostra o quão atual é nossa dívida com a história. A protagonista
do longa, vivida pela atriz Denise Fraga, é uma ex-militante de esquerda cujo
marido foi morto pelos militares. Ela recebe uma indenização pela morte dele e
compra um apartamento, mas, no dia da mudança, o desaparecido ressurge. A
figura do retorno mostra como é difícil seguir em frente sem resolver o
passado. É assim no filme e na vida de Criméia, Amélia, Ieda, Ana Mércia e Ana
Maria. “Ao fazer "Hoje", me deparo com uma sociedade que permite que
sua memória seja roubada. E que aceita que, neste momento, alguém esteja
sendo torturado numa prisão brasileira. Será que em algum momento a gente
vai dizer: ‘Chega!’?”
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