“Um quilombo no que é hoje a zona sul do Rio, uma
princesa (Isabel) que acolhia escravos fugidos no seu palácio e uma flor que
servia de símbolo de um movimento subversivo: historiador junta as peças do
quebra cabeça e reconstitui episódio esquecido do Império"
A história do quilombo do Leblon se
confunde com as origens do bairro Leblon. Apesar dos franceses não terem
conseguido se apossar e colonizar o Rio de Janeiro, o nome de um dos bairros
mais nobres da cidade tem origem em um francês. Charles, conhecido como le
blond (o louro), foi proprietário de um lote delimitado pela atual
avenida Visconde de Albuquerque, ruas General Urquiza, Dias Ferreira e pelo mar
chamado de campo do Leblon. Nessas terras, ele possuía uma empresa que
explorava a pesca de baleias (o óleo extraído do mamífero era utilizado no
sistema de iluminação pública e na construção civil) e uma chácara onde residiu
durante o período de 1809 até 1878, ano em que foi vendida ao português, José
de Seixas Magalhães.
O novo proprietário era um português de
ideias avançadas, dedicado à fabricação e comércio de malas e sacos de viagem
na Rua Gonçalves Dias, no Centro, onde já utilizava os mais modernos recursos tecnológicos.
Suas malas, feitas com máquina a vapor, eram reconhecidas pelo mundo afora e
foram premiadas tanto na Exposição do Rio de Janeiro, quanto na Exposição de
Viena d’Áustria. Contudo, Seixas tinha um motivo mais especial para ser
lembrado. Ele era contra o escravismo e fundou em sua chácara o quilombo do
Leblon.
Com
a cumplicidade dos principais abolicionistas da capital do Império, muitos
deles membros proeminentes da Confederação Abolicionista, Seixas recebia
escravos fugitivos e os escondia na chácara do Leblon, onde cultivava as suas
famosas camélias. A floricultura do Seixas, era conhecida mais ou menos
abertamente como o “quilombo Leblond”, ou “quilombo Le Bloon”, então um remoto
e ortograficamente ainda incerto subúrbio à beira-mar.
Naquela época, como infelizmente ainda
hoje, a camellia japonica era uma planta relativamente rara no
Brasil. E, exatamente como a Liberdade que se pretendia conquistar, a camélia
não era uma flor dessas comuns, naturais da terra e encontradas soltas na
natureza. Era, pelo contrário, uma flor especial, estrangeira, cheia de
melindres com o sol, que requeria know-how, ambiente, mão-de-obra,
técnicas de cultivo e cuidados muitíssimo especiais.
Diferentemente
do quilombo tradicional, de resistência, também conhecido como quilombo
rompimento, o quilombo do Leblon foi o primeiro quilombo abolicionista do país.
No
quilombo rompimento, a tendência
dominante era a política do esconderijo e do segredo de guerra. Por isso,
esforçam-se os quilombolas exatamente em proteger seu dia a dia, sua
organização interna e suas lideranças de todo tipo de inimigo ou forasteiro,
inclusive, depois, os historiadores. O melhor exemplo de quilombo rompimento
será o de mocambos guerreiros como o mocambo heroico de Acotirene; o mocambo de Dambrabanga; o mocambo
de Zumbi; o mocambo do Aqualtume, sua mãe; o mocambo de Andalaquituche, seu
irmão; a Cerca de Subupira; a Cerca Real do Macaco e toda a confederação a que
chamam os Palmares.
Já
no modelo novo do quilombo abolicionista, as lideranças são muito bem
conhecidas, cidadãos prestantes, com documentação civil em dia e,
principalmente, muito bem articulados politicamente. Não são mais os poderosos
guerreiros do modelo anterior, mas um tipo novo de liderança, uma espécie de
instância de intermediação entre a comunidade de fugitivos e a sociedade
envolvente. Nesse modelo, os contatos com a sociedade são tantos e tão essenciais,
que fazem parte do jogo político da sociedade envolvente.
O quilombo do Leblon era um ícone do
movimento abolicionista, uma de suas melhores bases simbólicas e um dos seus
trunfos para a negociação política que, assim como o quilombo de Petrópolis e o quilombo do Jabaquara, fazia
parte já do jogo político da transição.
Naquela época, o Leblon era quase no fim
do mundo e para chegar até lá era necessária uma longa viagem. Parte dela,
inclusive, tinha que ser feita a pé. O ponto tinha uma localização estratégica
oferecendo o necessário isolamento e grande proteção natural. A casa principal
do Quilombo ficava onde hoje se situa o Clube Campestre da Guanabara.
Seixas
era um homem muito bem relacionado. Além da cumplicidade que tinha com os
grupos abolicionistas do Rio, contava também com a proteção da própria Princesa
Isabel. E,
como prova de gratidão, Seixas reservava as mais belas camélias do seu
quilombo, que eram entregues com regularidade ao Palácio das Laranjeiras, para
enfeitar diariamente a mesa de trabalho e a capela particular da residência da
princesa.
A
flor servia como uma espécie de código através do qual os abolicionistas podiam
ser identificados, principalmente quando empenhados em ações mais perigosas, ou
ilegais, como o apoiamento de fugas e a obtenção de esconderijo para os
fugitivos.
Os
abolicionistas usavam-nas na lapela, reuniam-nas em ramalhetes ou cultivavam-nas
nos jardins, para sugerir a adesão a causa.
Um
escravo de São Paulo, por exemplo, que viesse parar no Rio de Janeiro, podia
identificar imediatamente os seus possíveis aliados, já na plataforma de
desembarque da Estação D. Pedro II, simplesmente pelo uso de uma dessas flores
ao peito, do lado do coração. Caso o fugitivo ignorasse totalmente os
princípios básicos dessa semiótica, dificilmente poderia contar com a proteção
da poderosa Confederação Abolicionista, cujo programa era combater o regime.
Segundo
o pesquisador Eduardo Silva, no livro As camélias do Leblon e a abolição da
escravatura, “Naquele
tempo, usar uma camélia na lapela, ou cultivá-la acintosamente no jardim de
casa, era quase uma confissão de fé abolicionista”.
O simbolismo estaria presente até mesmo
na hora da assinatura da lei, quando o presidente da Confederação
Abolicionista, João Clapp, se aproxima da princesa e lhe entrega, solenemente,
um “mimoso bouquet de camélias artificiais”, sendo seguido pelo imigrante
Seixas, que lhe passou às mãos um outro belíssimo buquê de camélias naturais, vindas
diretamente do seu quilombo do Leblon.
Alguns
pés remanescentes desse tempo simbólico ainda podem ser encontrados em velhos
jardins da cidade do Rio de Janeiro e são documentos vivos da história do
Brasil, como é o caso dos pés de camélias plantadas por Rui Barbosa,
abolicionista e também amigo querido, pelo que revelam itens de correspondência,
de Seixas Magalhães, em sua residência, no século XX, onde atualmente se
encontra a Fundação Casa de Rui Barbosa.
A Fundação Casa de Rui Barbosa é um centro de estudos que tem sede na casa senhorial
onde morou Rui Barbosa, situada em meio a um amplo terreno, no bairro de
Botafogo, é foi de lá que, no início desse ano, foram extraídas cinco mudas, doadas
pela Fundação Casa de Rui Barbosa ao
Ministério Público Federal.
As
mudas da casa de Rui Barbosa, de camélias vermelhas, foram plantadas ao lado de
outras mudas de camélias brancas, nos jardins do Ministério Público Federal, em
Brasília, em um evento que homenageou os 131 anos de abolição da escravatura no
país.
Na
inauguração do Jardim das Camélias, a procuradora-geral da República, Raquel
Dodge, portando um broche de flor branca no vestido afirmou que o Ministério
Público Federal pretende adotar uma camélia como símbolo do trabalho realizado em favor da
dignidade da pessoa humana e pela liberdade de todos, pela igualdade de todos,
homens e mulheres.
Segundo
enfatizou Humberto Jacques: “Trazemos para a nossa casa um sinal de que o
Ministério Público não é apenas contra a escravidão e o trabalho escravo, mas é
uma casa em nome da liberdade. Onde quer que estejam a liberdade e a expansão
dos direitos fundamentais, lá está o Ministério Público. Nós que defendemos a
democracia, direitos humanos, dignidade de todos perante a lei, um país sem
discriminação, onde as pessoas convivam e vivam em paz, precisamos lembrar que
a nossa luta de hoje começou muitos anos atrás e que estamos apenas
continuando"
Na
ocasião, Raquel Dodge anunciou ainda que lançará a Ordem das Camélias para
homenagear aqueles que, no âmbito do MPF, se dedicam à causa da liberdade e da
dignidade da pessoa humana. http://www.memorial.mpf.mp.br/nacional/jardim-das-camelias
O quilombo do Leblon foi mencionado no
romance “A Conquista (1899), de Coelho Neto, que transcorre nos anos que
culminaram com a Abolição.
Em
2015, os cantores brasileiros Caetano Veloso e Gilberto Gil, compuseram a
música “As Camélias do Quilombo do Leblon”, que tem como tema o quilombo. Quem quiser apreciar a música, é só acessar o link: https://youtu.be/72K3IERJRiw
E a premiada escritora
carioca, Luciana Sandroni, também resolveu contar essa parte pouco conhecida da
história num livro muito divertido, cheio de ilustrações e informações para as
crianças.
Este texto foi quase integralmente retirado de um artigo de
Eduardo Silva, historiador e pesquisador da Casa de Rui Barbosa que estuda há
mais de 30 anos temas como a escravidão e a cultura negra. Ele conta a história
acima com mais detalhes no livro As
Camélias do Leblon e a Abolição da Escravatura.
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