segunda-feira, 29 de julho de 2019

AS CAMÉLIAS DO LEBLON





“Um quilombo no que é hoje a zona sul do Rio, uma princesa (Isabel) que acolhia escravos fugidos no seu palácio e uma flor que servia de símbolo de um movimento subversivo: historiador junta as peças do quebra cabeça e reconstitui episódio esquecido do Império"


         A história do quilombo do Leblon se confunde com as origens do bairro Leblon. Apesar dos franceses não terem conseguido se apossar e colonizar o Rio de Janeiro, o nome de um dos bairros mais nobres da cidade tem origem em um francês. Charles, conhecido como le blond (o louro), foi proprietário de um lote delimitado pela atual avenida Visconde de Albuquerque, ruas General Urquiza, Dias Ferreira e pelo mar chamado de campo do Leblon. Nessas terras, ele possuía uma empresa que explorava a pesca de baleias (o óleo extraído do mamífero era utilizado no sistema de iluminação pública e na construção civil) e uma chácara onde residiu durante o período de 1809 até 1878, ano em que foi vendida ao português, José de Seixas Magalhães.
         O novo proprietário era um português de ideias avançadas, dedicado à fabricação e comércio de malas e sacos de viagem na Rua Gonçalves Dias, no Centro, onde já utilizava os mais modernos recursos tecnológicos. Suas malas, feitas com máquina a vapor, eram reconhecidas pelo mundo afora e foram premiadas tanto na Exposição do Rio de Janeiro, quanto na Exposição de Viena d’Áustria. Contudo, Seixas tinha um motivo mais especial para ser lembrado. Ele era contra o escravismo e fundou em sua chácara o quilombo do Leblon.
         Com a cumplicidade dos principais abolicionistas da capital do Império, muitos deles membros proeminentes da Confederação Abolicionista, Seixas recebia escravos fugitivos e os escondia na chácara do Leblon, onde cultivava as suas famosas camélias. A floricultura do Seixas, era conhecida mais ou menos abertamente como o “quilombo Leblond”, ou “quilombo Le Bloon”, então um remoto e ortograficamente ainda incerto subúrbio à beira-mar.
            Naquela época, como infelizmente ainda hoje, a camellia japonica era uma planta relativamente rara no Brasil. E, exatamente como a Liberdade que se pretendia conquistar, a camélia não era uma flor dessas comuns, naturais da terra e encontradas soltas na natureza. Era, pelo contrário, uma flor especial, estrangeira, cheia de melindres com o sol, que requeria know-how, ambiente, mão-de-obra, técnicas de cultivo e cuidados muitíssimo especiais.
            Diferentemente do quilombo tradicional, de resistência, também conhecido como quilombo rompimento, o quilombo do Leblon foi o primeiro quilombo abolicionista do país.
       No quilombo rompimento, a tendência dominante era a política do esconderijo e do segredo de guerra. Por isso, esforçam-se os quilombolas exatamente em proteger seu dia a dia, sua organização interna e suas lideranças de todo tipo de inimigo ou forasteiro, inclusive, depois, os historiadores. O melhor exemplo de quilombo rompimento será o de mocambos guerreiros como o mocambo heroico de Acotirene; o mocambo de Dambrabanga; o mocambo de Zumbi; o mocambo do Aqualtume, sua mãe; o mocambo de Andalaquituche, seu irmão; a Cerca de Subupira; a Cerca Real do Macaco e toda a confederação a que chamam os Palmares.
             Já no modelo novo do quilombo abolicionista, as lideranças são muito bem conhecidas, cidadãos prestantes, com documentação civil em dia e, principalmente, muito bem articulados politicamente. Não são mais os poderosos guerreiros do modelo anterior, mas um tipo novo de liderança, uma espécie de instância de intermediação entre a comunidade de fugitivos e a sociedade envolvente. Nesse modelo, os contatos com a sociedade são tantos e tão essenciais, que fazem parte do jogo político da sociedade envolvente.
          O quilombo do Leblon era um ícone do movimento abolicionista, uma de suas melhores bases simbólicas e um dos seus trunfos para a negociação política que, assim como o quilombo de Petrópolis e o quilombo do Jabaquara, fazia parte já do jogo político da transição.
          Naquela época, o Leblon era quase no fim do mundo e para chegar até lá era necessária uma longa viagem. Parte dela, inclusive, tinha que ser feita a pé. O ponto tinha uma localização estratégica oferecendo o necessário isolamento e grande proteção natural. A casa principal do Quilombo ficava onde hoje se situa o Clube Campestre da Guanabara.
          Seixas era um homem muito bem relacionado. Além da cumplicidade que tinha com os grupos abolicionistas do Rio, contava também com a proteção da própria Princesa Isabel. E, como prova de gratidão, Seixas reservava as mais belas camélias do seu quilombo, que eram entregues com regularidade ao Palácio das Laranjeiras, para enfeitar diariamente a mesa de trabalho e a capela particular da residência da princesa.

          A flor servia como uma espécie de código através do qual os abolicionistas podiam ser identificados, principalmente quando empenhados em ações mais perigosas, ou ilegais, como o apoiamento de fugas e a obtenção de esconderijo para os fugitivos.
     Os abolicionistas usavam-nas na lapela, reuniam-nas em ramalhetes ou cultivavam-nas nos jardins, para sugerir a adesão a causa.
          Um escravo de São Paulo, por exemplo, que viesse parar no Rio de Janeiro, podia identificar imediatamente os seus possíveis aliados, já na plataforma de desembarque da Estação D. Pedro II, simplesmente pelo uso de uma dessas flores ao peito, do lado do coração. Caso o fugitivo ignorasse totalmente os princípios básicos dessa semiótica, dificilmente poderia contar com a proteção da poderosa Confederação Abolicionista, cujo programa era combater o regime.
        Segundo o pesquisador Eduardo Silva, no livro As camélias do Leblon e a abolição da escravatura, “Naquele tempo, usar uma camélia na lapela, ou cultivá-la acintosamente no jardim de casa, era quase uma confissão de fé abolicionista”.
       O simbolismo estaria presente até mesmo na hora da assinatura da lei, quando o presidente da Confederação Abolicionista, João Clapp, se aproxima da princesa e lhe entrega, solenemente, um “mimoso bouquet de camélias artificiais”, sendo seguido pelo imigrante Seixas, que lhe passou às mãos um outro belíssimo buquê de camélias naturais, vindas diretamente do seu quilombo do Leblon.
     Alguns pés remanescentes desse tempo simbólico ainda podem ser encontrados em velhos jardins da cidade do Rio de Janeiro e são documentos vivos da história do Brasil, como é o caso dos pés de camélias plantadas por Rui Barbosa, abolicionista e também amigo querido, pelo que revelam itens de correspondência, de Seixas Magalhães, em sua residência, no século XX, onde atualmente se encontra a Fundação Casa de Rui Barbosa.


           A Fundação Casa de Rui Barbosa é  um centro de estudos que tem sede na casa senhorial onde morou Rui Barbosa, situada em meio a um amplo terreno, no bairro de Botafogo, é foi de lá que, no início desse ano, foram extraídas cinco mudas, doadas pela Fundação Casa de Rui Barbosa ao Ministério Público Federal.
         As mudas da casa de Rui Barbosa, de camélias vermelhas, foram plantadas ao lado de outras mudas de camélias brancas, nos jardins do Ministério Público Federal, em Brasília, em um evento que homenageou os 131 anos de abolição da escravatura no país.

         Na inauguração do Jardim das Camélias, a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, portando um broche de flor branca no vestido afirmou que o Ministério Público Federal pretende adotar uma camélia como símbolo do trabalho realizado em favor da dignidade da pessoa humana e pela liberdade de todos, pela igualdade de todos, homens e mulheres.

        Segundo enfatizou Humberto Jacques: “Trazemos para a nossa casa um sinal de que o Ministério Público não é apenas contra a escravidão e o trabalho escravo, mas é uma casa em nome da liberdade. Onde quer que estejam a liberdade e a expansão dos direitos fundamentais, lá está o Ministério Público. Nós que defendemos a democracia, direitos humanos, dignidade de todos perante a lei, um país sem discriminação, onde as pessoas convivam e vivam em paz, precisamos lembrar que a nossa luta de hoje começou muitos anos atrás e que estamos apenas continuando"

       Na ocasião, Raquel Dodge anunciou ainda que lançará a Ordem das Camélias para homenagear aqueles que, no âmbito do MPF, se dedicam à causa da liberdade e da dignidade da pessoa humana. http://www.memorial.mpf.mp.br/nacional/jardim-das-camelias

      O quilombo do Leblon foi mencionado no romance “A Conquista (1899), de Coelho Neto, que transcorre nos anos que culminaram com a Abolição.
        
        Em 2015, os cantores brasileiros Caetano Veloso e Gilberto Gil, compuseram a música “As Camélias do Quilombo do Leblon”, que tem como tema o quilombo. Quem quiser apreciar a música, é só acessar o link: https://youtu.be/72K3IERJRiw


       E a premiada escritora carioca, Luciana Sandroni, também resolveu contar essa parte pouco conhecida da história num livro muito divertido, cheio de ilustrações e informações para as crianças.


       
Este texto foi quase integralmente retirado de um artigo de Eduardo Silva, historiador e pesquisador da Casa de Rui Barbosa que estuda há mais de 30 anos temas como a escravidão e a cultura negra. Ele conta a história acima com mais detalhes no livro As Camélias do Leblon e a Abolição da Escravatura.



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