quinta-feira, 13 de abril de 2017

SORORIDADE

                                           ESCRITO POR ANNATROTTAYARYD
                                           e publicado no Correio da Cidadania
       http://www.correiocidadania.com.br/2-uncategorised/12484-sororidade

O slogan “mexeu com uma, mexeu com todas”, acom­pa­nhado da hashtag #che­ga­de­as­sédio, es­tam­pada nas ca­mi­setas de atrizes glo­bais e re­pro­du­zida nas redes so­ciais, re­cen­te­mente, mexeu co­migo.

Fi­quei com um gos­tinho de evo­lução e a sen­sação de que nos unir é pos­sível. Essa cam­panha não só ilu­minou um crime que vive da ver­gonha e do medo, mas prin­ci­pal­mente de­sen­ca­deou uma onda de in­dig­nação ao as­sédio se­xual so­frido por uma mu­lher no am­bi­ente de tra­balho, trans­for­mando o fato in­di­vi­dual em uma questão co­le­tiva.
       
Mu­lheres se iden­ti­fi­cando e per­ce­bendo o quanto é im­por­tante a união para ajudar a que­brar o si­lêncio é sim­ples­mente fan­tás­tico.
      
Não se trata de julgar aquilo que não vimos, muito menos achar que existem santos ou demô­nios de qual­quer dos lados, como gritam as opi­niões em con­trário. São apenas as mu­lheres di­zendo que não querem que isso acon­teça com mais nin­guém. Que não es­tamos so­zi­nhas e essa é uma luta que tem que ser de todas nós.
      
Em ou­tras épocas, cer­ta­mente, a mai­oria diria: “bo­bagem, amiga. É brin­ca­deira. Não liga”. Mas aí é que está. Não é brin­ca­deira. É ma­chismo. É exer­cício de poder. É as­sédio, sim.            
       
O que me fez lem­brar do con­ceito de so­ro­ri­dade. Se­gundo Lola Aro­no­vich, pro­fes­sora do de­par­ta­mento de lín­guas es­tran­geiras da Uni­ver­si­dade Fe­deral do Ceará e au­tora de um dos mai­ores blogs fe­mi­nistas do Brasil, o Es­creva Lola Es­creva, so­ro­ri­dade “vem de ‘irmãs’ e vai contra esse mito de que as mu­lheres não podem ser amigas”.  
      
Uma pa­lavra fo­ne­ti­ca­mente bo­nita e de um sig­ni­fi­cado re­pre­sen­ta­tivo que veio para que­brar um dos braços mais fortes do pa­tri­ar­cado: a ri­va­li­dade entre mu­lheres, que serve de ver­da­deiro es­cudo para o opressor, nos fa­zendo lutar uma contra as ou­tras en­quanto o que tem de ser des­truído – esse sis­tema que es­tupra mu­lheres a cada 12 se­gundos – per­ma­nece firme e forte.
      
A pa­lavra so­ro­ri­dade não existe na língua por­tu­guesa, mas uma pa­lavra muito se­me­lhante pode ser en­con­trada em qual­quer di­ci­o­nário: fra­ter­ni­dade, des­crita como so­li­da­ri­e­dade entre ir­mãos ou har­monia entre os ho­mens. Ambas vêm do latim, sendo que sóror cor­res­ponde a irmãs e frater a ir­mãos. Por óbvio, foi a versão mas­cu­lina que ficou entre nós.
   
En­tre­tanto, em­bora ainda seja des­co­nhe­cida por muitas pes­soas, so­ro­ri­dade é uma pa­lavra bas­tante uti­li­zada e fa­mi­liar às in­te­grantes dos mo­vi­mentos fe­mi­nistas, para tra­duzir o sen­ti­mento de aco­lhi­mento entre as mu­lheres fe­mi­nistas, na me­dida em que sig­ni­fica ir­man­dade, união e cui­dado mútuo entre mu­lheres, algo pri­mor­dial para que haja um sen­ti­mento de grupo e re­co­nhe­ci­mento das opres­sões so­fridas em con­junto pelas mu­lheres.
      
Se­gundo Maiara Mo­reira de Rios, “so­ro­ri­dade é uma di­mensão ética, po­lí­tica e prá­tica do fe­mi­nismo con­tem­po­râneo. É uma ex­pe­ri­ência sub­je­tiva entre mu­lheres na busca por re­la­ções po­si­tivas e sau­dá­veis, na cons­trução de ali­anças exis­ten­ciais e po­lí­ticas com ou­tras mu­lheres, para con­tri­buir com a eli­mi­nação so­cial de todas as formas de opressão e ao apoio mútuo para al­cançar o em­po­de­ra­mento vital de cada mu­lher. A so­ro­ri­dade é a cons­ci­ência crí­tica sobre a mi­so­ginia e é o es­forço tanto pes­soal quanto co­le­tivo de des­truir a men­ta­li­dade e a cul­tura mi­só­gina, en­quanto trans­forma as re­la­ções de so­li­da­ri­e­dade entre as mu­lheres” (RÍOS, Maiara Mo­reira de, Y DE LOS Mar­cela La­garde. So­ro­ridad. In: GAMBA, Su­sana Be­a­triz. Dic­ci­o­nario de es­tú­dios de gé­nero y fe­mi­nismos. Bu­enos Aires: 2009.    
     
Mas não po­demos ter a falsa ideia de que so­ro­ri­dade é uni­versal, porque ela não é. E para ser uma ex­pe­ri­ência em­po­de­ra­dora pre­cisa ser de­vi­da­mente con­tex­tu­a­li­zada, sob pena de per­pe­tuar uma falsa e sim­plista su­po­sição de ir­man­dade, que nega as di­fe­renças e acaba ba­na­li­zada.
       
Por isso, para ser de ver­dade, a so­ro­ri­dade pre­cisa conter também a ideia de in­ter­sec­ci­o­na­li­dade, pré-re­qui­sito para que a ir­man­dade fe­mi­nina seja mais atenta e cui­da­dosa, ob­ser­vando as ne­ces­si­dades es­pe­ciais de cada grupo de mu­lheres e as di­fe­rentes formas de opressão que elas so­frem.
      
Como ex­plica Pa­trícia Hill Collis, é “a in­ter­sec­ci­o­na­li­dade que nos ofe­rece uma lente pela qual se vê raça, classe, gê­nero, se­xu­a­li­dade como pro­cessos que se cons­ti­tuem mu­tu­a­mente, se apre­sen­tando ma­te­ri­al­mente na vida co­ti­diana das pes­soas de ma­neiras com­plexas, como con­fi­gu­ra­ções muitas vezes con­tra­di­tó­rias, que se so­bre­põem, in­te­ragem e in­ter­sec­ci­onam”.
       
Uma mu­lher negra, por exemplo, que pre­cisa lidar ao mesmo tempo com o ma­chismo e com o ra­cismo, é di­fe­rente de uma branca. Aliás, por tudo o que pude ler, acre­dito que na ex­pe­ri­ência do Brasil foram e con­ti­nuam sendo as mu­lheres in­dí­genas e ne­gras aquelas ca­pazes de exercer de forma mais ampla e pro­funda a so­ro­ri­dade.
 
Prin­ci­pal­mente quando per­ce­bemos que essa prá­tica flo­resceu, por exemplo, no con­texto ci­tado da es­cra­vidão, entre as po­pu­la­ções mais po­bres e mais vi­o­len­tadas do país. Nos qui­lombos, al­deias e ter­reiros, onde mu­lheres eram ca­pazes de, de­pois de levar 100 chi­co­tadas, cuidar da pele e ca­belo de mu­lheres brancas cau­sa­doras de suas ma­zelas e ainda serem amas de leite dos fi­lhos delas.
      
Por isso a im­por­tância de dar o foco ne­ces­sário para as in­te­re­sec­ções com ou­tras opres­sões, porque uma real união fe­mi­nina, no sen­tido de ir­man­dade, cui­dado e res­peito mútuo deve passar pri­meiro pelo re­co­nhe­ci­mento das di­fe­renças, e a luta fe­mi­nista só pode existir se também for an­ti­pa­tri­arcal, an­tir­ra­cista e an­ti­ca­pi­ta­lista.
      
Apesar de todas as di­fi­cul­dades, já existem muitas ini­ci­a­tivas e exem­plos de ati­tudes ca­pazes de me­lhorar e fa­ci­litar a vida de muitas mu­lheres que pre­cisam so­bre­viver em uma so­ci­e­dade ma­chista e hostil.
      
“Vamos juntas?”, é um pro­jeto que surgiu no ano pas­sado com a ideia de unir mu­lheres para que não te­nham tanto medo e in­se­gu­ranças quando têm de se lo­co­mover pela ci­dade. Na pá­gina do Fa­ce­book do pro­jeto, as me­ninas des­crevem a ideia da se­guinte ma­neira: “Na pró­xima vez que es­tiver em uma si­tu­ação de risco, ob­serve: do seu lado pode estar outra mu­lher pas­sando pela mesma in­se­gu­rança. Que tal irem juntas?”
      
O pro­jeto se mantém de forma vo­lun­tária, com me­ninas que ajudam na ad­mi­nis­tração da pá­gina e até no de­sen­vol­vi­mento de um apli­ca­tivo, mas a cri­a­dora, Babi Souza, quer ex­pandir o pro­jeto ainda mais, e por isso montou uma cam­panha no site Ca­tarse.
       
Também no ano pas­sado, al­gumas mu­lheres re­sol­veram es­pa­lhar uma men­sagem no Fa­ce­book, a in­cen­tivar que mães prestem o Enem, dis­pondo-se a cuidar gra­tui­ta­mente das cri­anças du­rante os dois dias da prova. Se­gundo a jor­na­lista Clara Ce­rioni, 20 anos, uma dessas mu­lheres, ela disse de­sejar usar seu pri­vi­légio de já estar na fa­cul­dade para ajudar ou­tras mu­lheres e ainda afirmou que o MEC de­veria ter uma es­tru­tura que pos­si­bi­li­tasse que essas mães fi­zessem a prova com tran­qui­li­dade. “É papel deles também rein­tro­duzir na so­ci­e­dade essas mães e fazê-las com que elas possam es­tudar para ter um bom fu­turo”.
      
A pá­gina criada no Fa­ce­book para or­ga­nizar as mães que querem fazer a prova e as mu­lheres que de­sejam cuidar das cri­anças é: https://​www.​fac​eboo​k.​com/​Pelas-M%C3%A3es-do-Enem-562181053907049/?fref=ts&__mref=mes­sa­ge_­bubble.
      
Outra ini­ci­a­tiva bem ba­cana foi de uni­ver­si­tá­rias que cri­aram um sis­tema para ajudar co­legas com “aci­dentes” mens­truais, e que deu muito certo. Com uma caixa de plás­tico, uma folha de papel e ca­netas e um pu­nhado de ab­sor­ventes, Manu Ma­rinho, uma es­tu­dante de De­sign re­ci­fense de 20 anos de idade, criou um posto de do­a­ções de ab­sor­vente num dos ba­nheiros do Centro de Artes e Co­mu­ni­cação da Uni­ver­si­dade Fe­deral de Per­nam­buco, para que nin­guém mais passe por cons­tran­gi­mentos quando for sur­pre­en­dida pela mens­tru­ação.

Na pla­quinha es­creveu: “pegue um, caso pre­cise. Deixe um, se tiver so­brando”, cri­ando um mo­vi­mento e uma ideia de ação per­ma­nente que es­pa­lhou so­li­da­ri­e­dade e so­ro­ri­dade para muito além do que havia ima­gi­nado. Logo, a ideia foi es­ten­dida para ou­tros ba­nheiros da uni­ver­si­dade. Se quiser saber mais sobre essa ini­ci­a­tiva, pode ler aqui, no  http://​mar​coze​ro.​org/​o-​des​pert​ar-​da-​sor​orid​ade.
      
Também existem grupos fe­mi­ninos se­cretos no Fa­ce­book, onde só en­tram pes­soas in­di­cadas por amigas, cujos laços ex­tra­polam a in­ternet. “Com câncer de mama e dor nas pernas, a se­cre­tária Fa­biana Ri­beiro, 35 anos, ouviu do mé­dico que de­veria fazer ca­mi­nhadas. “Mas não ia ter força para ca­mi­nhar so­zinha”, diz. Postou o di­lema no grupo. Na manhã se­guinte 14 mu­lheres des­co­nhe­cidas a es­pe­ravam num parque perto de casa” http://​www1.​folha.​uol.​com.​br/​cot​idia​no/​2016/​05/​1766587-grupos-se­cretos-em-rede-so­cial-viram-co­mu­ni­dades-de-apoio-entre-mu­lheres.shtml.
       
Sheryl Snad­berg, CEO do Fa­ce­book, também criou uma co­mu­ni­dade que ela chama de Lean In, algo como “apoiem-se”, em por­tu­guês. A ideia é, jus­ta­mente, fazer com que mu­lheres se unam e en­con­trem um apoio mútuo para en­fren­tarem as di­fi­cul­dades e os abusos que passam na vida mo­derna. Aí está, ba­si­ca­mente, de­fi­nido o con­ceito de so­ro­ri­dade.
      
E em seu dis­curso, após ficar viúva, es­cla­receu a im­por­tância do apoio mútuo, em uma de suas fa­cetas:

“As mu­lheres tornam-se mães sol­teiras por vá­rias ra­zões: morte do par­ceiro, fim de uma re­lação, es­colha pró­pria. Há pouco mais de um ano, fi­quei viúva e me juntei a elas. Antes, eu não sabia como é di­fícil ter su­cesso no tra­balho quando você está so­bre­car­re­gada em casa. Todos os dias essas mães fazem sa­cri­fí­cios, dri­blam bar­reiras e criam fa­mí­lias lindas apesar das de­mandas. O mundo não fa­ci­lita a vida delas. É ne­ces­sário uma co­mu­ni­dade para criar uma cri­ança, e muitas mães sol­teiras pre­cisam e me­recem mais do que es­tamos dando a elas” (AQUI).
       
Para quem não sabe, es­treia no dia 5 de maio desse ano (2017), no canal Curta!, o do­cu­men­tário Mexeu com Uma, Mexeu com Todas, da ci­ne­asta Sandra Wer­neck (Ca­zuza - O Tempo Não Para). O filme de­bate o tema da vi­o­lência contra a mu­lher e se propõe a ser uma fer­ra­menta de dis­se­mi­nação e de cons­ci­en­ti­zação da causa.    
       
Par­ti­ci­pante da 22ª edição do Fes­tival de Do­cu­men­tá­rios É Tudo Ver­dade, o 19º filme da car­reira de Sandra re­trata casos re­la­tados por di­fe­rentes mu­lheres. Entre elas estão a atriz e mo­delo Luiza Brunet, a na­da­dora Jo­anna Ma­ra­nhão, a es­cri­tora Clara Aver­buck e a bi­oquí­mica Maria da Penha Maia Fer­nandes, que deu o nome à lei que tornou mais dura a pu­nição contra a vi­o­lência do­més­tica e fa­mi­liar contra a mu­lher. Além dos de­poi­mentos, a pro­dução traz ima­gens de pro­testos que ex­põem a vul­ne­ra­bi­li­dade da mu­lher no Brasil.
       
E, apesar de o tí­tulo ter sido es­co­lhido por uma frase vista pela di­re­tora em um cartaz du­rante uma das ma­ni­fes­ta­ções exi­bidas no do­cu­men­tário, vimos essa ex­pressão ga­nhar uma nova di­mensão ao se tornar o slogan de pro­testo contra o as­sédio co­me­tido pelo ator José Mayer, so­frido e de­nun­ciado pela fi­gu­ri­nista da Globo Susllem To­nani, antes da es­tréia do filme.
          
“MEXEU COM UMA MEXEU COM TODAS” não é algo fácil e des­com­pli­cado de se pra­ticar, mas com cer­teza é pos­sível. O que es­pero é que esse “mexeu com uma, mexeu com todas” de hoje, oxalá ul­tra­passe os cor­re­dores da Globo e in­clua Ja­naina Pas­choal, Dan­dara (a tran­se­xual morta no Ceará), Eliza Sa­múdio (as­sas­si­nada pelo go­leiro Bruno), Jo­anna Ma­ra­nhão e muitas ou­tras ví­timas es­car­nadas pelo ma­chismo ins­ti­tu­ci­o­na­li­zado do Brasil. E que cada vez mais SO­RO­RI­DADE se es­palhe por nós.

 

segunda-feira, 3 de abril de 2017

desCasos


                                   Em novembro de 2016, Alexandra Szafir, uma advogada criminal muito bem-sucedida e conceituada, defensora intransigente da advocacia pro bono e da defesa dos mais fracos, morreu, vítima da ELA. Sim, ela era irmã gêmea de Luciano Szafir, filha de família abastada e conhecida da sociedade paulistana.

                                    Eu não a conheci. A bem da verdade, nem sabia de sua existência. Quem me contou sobre Alexandra foi uma amiga - que teve a oportunidade e o privilégio de trabalhar com ela - quando nos encontramos recentemente no velório de um amigo, que também faleceu vítima da ELA.
                                    Desde então, sua história não me saiu mais da cabeça, e, em pesquisas pela internet, fiquei encantada com tudo o que li. Alexandra é eternamente  inspiradora!
                                    Foi então que resolvi registrar sua história aqui, para que outras pessoas também possam conhecê-la.                                       
                                    Para quem não sabe, ELA, também conhecida por esclerose lateral amiotrófica, é uma doença horrorosa, sem cura da medicina, que progressiva e avassaladoramente paralisa os músculos e leva inexoravelmente à morte.
                                    Por isso, receber a notícia de ser portador de ELA é receber nas mãos, sem apelação a Deus ou à ciência, uma sentença de morte. Ao doente, primeiro vai-lhe faltar força muscular para os movimentos mais simples: segurar uma caneta, fechar um zíper, apertar a válvula sanitária, abraçar um filho. Antes disso, ou logo depois dessas manifestações, podem ocorrer também quedas do nada – está-se andando e, de repente, desaba-se. Em poucos meses, a ELA evolui à paulatina e desesperante perda da fala, e ocorresse essa perda abruptamente seria menos chocante do que acontecer por etapas: dificuldade de pronunciar algumas palavras, depois um balbuciar, na sequência um emitir de grunhidos, finalmente a ausência de qualquer som e do mexer dos lábios – com muita saliva escorrendo pelo queixo. Aí vem a impossibilidade de andar, a cabeça insustentável para um pescoço que parece feito de mola, restando ao enfermo somente o movimento dos olhos – com o corpo paralisado, são eles, os olhos, que se tornam mais vivos e inquietos, e possibilitam ao doente expressar o que lhe vai pela mente. Como um condenado à morte que caminha lúcido para o patíbulo - trajeto que dura em média, de três a cinco anos - o doente mantém o raciocínio claro e sabe tudo o que está acontecendo, porque somente os neurônios que comandam nervos e movimentos se degeneram, e assim permanece, lúcido, até que todos os músculos do corpo se petrifiquem e a morte finalmente chegue, sob a forma de parada respiratória.     
                                    A ELA ficou mais conhecida com o ‘desafio do balde de gelo’ – talvez você se lembre disso - que viralizou em 2013 na internet, e tinha por objetivo arrecadar dinheiro para a pesquisa da doença. Muitos também a identificam em razão do filme de Stephen Hawking.
                                   Alexandra foi diagnosticada com ELA em 2005. Isso, entretanto, não a impediu de continuar trabalhando arduamente, nem de receber, em 2006, o Prêmio Advocacia Solidária, oferecido pelo TJ/SP, IDDD e Instituto Pro Bono para homenagear advogados que trabalham gratuitamente em causas sociais. Já em estágio avançado da doença, ela ainda escreveu dois livros: “desCasos, uma advogada às voltas com o direito dos excluídos”, publicado em 2010, pela Editora Saraiva, e “desCasos 2”, lançado em 2014, cuja renda, no lançamento, foi toda revertida para pesquisar a cura da ELA.
                                  As histórias são o resultado de sua experiência pessoal, ao participar, nos anos 90, de uma ação inovadora no Brasil, por meio do Instituto de Defesa do Direito de Defesa, de mutirões em cadeias.                    
                       Segundo relatos, Alexandra escreveu o primeiro livro, “desCasos”, com seu nariz ‘intrometido’ e a ajuda de um software, instalado em seu notebook por sua fonoaudióloga, que a possibilitava mexer o mouse. Já o segundo, ela escreveu com o piscar dos olhos, o único movimento que então lhe restava.
                      São livros pequenos de tamanho, mas enormes em humanidade, que retratam, em uma prosa fácil e convidativa, a busca de Alexandra pela justiça e sua enorme determinação em desfazer injustiças.
                        Corajosos, os livros não só escancaram as entranhas da Justiça Penal brasileira, expondo suas mazelas, como também colocam o dedo na ferida,  mostrando a inoperância ou indiferença alheias e a truculência daqueles que Michel Foucault chamava de “pequenos ortopedistas da moral”, o que dói um bocado.
                        São falhas processuais, abusos de poder, tortura da polícia judiciária. Há juízes soberbos, promotores insensíveis, advogados omissos. De tudo um pouco se encontra nos causos que ela nos conta de forma didática e por vezes sarcástica, permitindo até mesmo aos leigos mergulhar, sem dificuldade, no horizonte penal.
                        E, ao mostrar os descaminhos da justiça, ela nos convida à reflexão. Não somente sobre os problemas da Justiça brasileira, mas também sobre a atuação de todas as pessoas envolvidas com o direito e o nosso verdadeiro compromisso com a justiça.
                        Nas palavras de Leopoldo Stefanno L. Louveira, “A obra com a qual o leitor se depara fatalmente o fará pensar sobre a famosa frase “ver sem enxergar” as não pessoas, os excluídos, os esquecidos que gravitam às bordas do meio social. O recado é claro: se cada um voltasse o olhar para o “outro”, talvez muitos dos casos/descasos aqui contados pudessem ter sido evitados...”
                        É bem verdade, muitos dirão que a maioria dos excluídos de Alexandra mereceram as sanções que receberam, pelos males que infligiram a outros. Entretanto, se é verdade que não podemos esquecer a dor das vítimas que sofreram com violações e se sente impotentes, também não podemos deixar de ver os esquecidos ou maltratados nos porões do sistema criminal, vítimas de diferentes injustiças. Não existem cidadãos mais ou menos humanos que outros. Além disso, ninguém pode ser mais responsável do que as sanções que lhes são atribuídas.  
                        De outro lado, para discutirmos sobre a justiça que queremos, precisamos antes, ver e mostrar a justiça que não queremos, e é exatamente essa que os livros de Alexandra nos mostram, nos permitindo aprender com olhares alheios, que flagram aquilo que muitas vezes os nossos próprios não são capazes ou não estão dispostos a enxergar.         
                                    Mas, se os casos e descasos impressionam, o difícil é saber, ao final, o que comove mais: se são as histórias de descasos do sistema criminal ou esforço incomum da autora para contá-las.
                                  Verdadeiro exemplo de humanidade e superação, Alexandra Szafir, em suas entrevistas que circulam pela internet, nos conta o segredo: “Não tenho vocação para ser infeliz...”.
                                  E nos dá a dica: “...acho que tenho um mecanismo inconsciente de autoproteção, porque não fico pensando no que eu não posso fazer, simplesmente faço o que posso.” (blog deficiente Ciente)                                                                                     
            Atualmente há, no Brasil, cerca de 14 mil pessoas com ELA, e, no mundo, são aproximadamente 400 mil os que desenvolveram a doença.     
            Não obstante, para o tratamento da doença ainda existem muito poucos profissionais capacitados e uma complicação imensa para a realização do diagnóstico, o que leva a pessoa a peregrinar por cerca de um ano, de consultório em consultório, de laboratório em laboratório, até que a doença seja identificada em diagnóstico por exclusão, o que é muito tempo, se considerarmos que o período de vida médio é de três a cinco anos. Além disso, o serviço de fisioterapia em casa, essencial quando a paralisia se agrava, não é oferecido pela rede pública e são poucos os planos de saúde que o contemplam.
            Para representar os pacientes nessa luta e tentar fazer com que ela ganhe força e visibilidade, existe a Associação Brasileira de Esclerose Lateral Amiotrófica, que faz o que pode, mas não ainda tem força política suficiente.
            A luta é árdua e longa. Assim como ocorreu com o câncer e a Aids - enfermidades cujos diagnósticos representavam a morte e que hoje são, na maioria dos casos, controláveis, o que se espera é que a ciência também golpeie a Esclerose Lateral Amiotrófica. Para o futuro, a grande esperança são as pesquisas com células-tronco, estruturas versáteis capazes de se transformar em qualquer tecido do corpo.
                                 Esse post é o registro singelo da minha admiração eterna à guerreira Alexandra Szafir, que nos inspira a continuar lutando, sem nunca perder a indignação com aquilo que está errado. #mulher incrível#gentequefaz#