quarta-feira, 28 de maio de 2014

INSEGURANÇA E BARBÁRIE


     Numa sociedade sob o império econômico e sob o domínio do medo, da insegurança e do egoísmo, o que se observa por entre os escombros de civilidade que ainda restam é um mundo cada vez menos humano e mais bárbaro.
     Um jovem, acusado de assalto, é acorrentado nu a um poste com uma trava de bicicleta e tem sua orelha cortada, no Rio de Janeiro. Outro ladrão é acorrentado em Itajaí - Santa Catarina. Em Goiânia, um adolescente é espancado pela população após um furto. Em Teresina - Piauí, um suspeito de assalto é amarrado e tem seu rosto posto em um formigueiro. No interior de Minas Gerais, um rapaz de dezoito anos, foi amarrado a um poste e açoitado com fios de energia elétrica pela população.
     E a “justiça com as próprias mãos” não para. Nos últimos dois meses três pessoas inocentes foram assassinadas em “linchamentos coletivos”, acusadas de crimes não comprovados. Alailton Ferreira e Marcelo Pereira da Silva foram mortos em espancamentos coletivos, acusados de estupro. E o caso mais recente é o do Guarujá, onde Fabiane Maria de Jesus, de 33 anos, foi espancada até a morte pela população, depois de ter sido identificada como a suposta sequestradora de crianças sacrificadas em rituais de “magia negra’ em retrato falado da página de notícias do Facebook ‘Guarujá Alerta’.
     Sem investigações, sem leis, sem direitos, nem humanos. Apenas julgamentos súbitos praticados por indivíduos engolfados em sua razão e dominados pela vontade coletiva irracional de ódio, praticados em verdadeiros rituais de vingança e desumanização daqueles cuja conduta é socialmente imprópria, aos quais não é dado tempo nem oportunidade para provar ou não a sua inocência.
     Assistimos atônitos à onda crescente de barbárie e nos comovemos com tamanha brutalidade, preocupados com o retrocesso civilizatório. Sabemos que eles não são os primeiros e fatalmente não serão as últimas vítimas, nem da violência, nem do descaso nem da ignorância. Mesmo assim, a indignação não vem.
     A desigualdade que se perpetua no concreto da vida cotidiana e que começa e persiste na cabeça de cada um, legitima a ideia de que a vida de uns vale menos do que a de outros, de que a vida dos mesmos de sempre vale menos do que a dos mesmos de sempre. No país das indignações seletivas, onde a tortura é consentida, temos por hábito aplaudir soluções arbitrárias contra um caos legitimado.
     Afinal, o Estado é omisso. A polícia é desmoralizada. A Justiça é falha. São todos marginais e também vagabundos. Não podemos mais conviver com a impunidade. No fundo, o Brasil que pede direitos humanos apenas para humanos direitos se sente vingado.
     E é muito mais fácil dividir o mundo entre bons e maus, mocinhos e bandidos e transformar os problemas humanos em problemas dos políticos e dos donos do poder econômico, e não de todos nós.
     Assim esquecemos o óbvio em nome da conveniência. E motivados pelo discurso do medo e da insegurança nos permitimos perder a única coisa que nos diferencia no mundo animal – a razão - para nos tornarmos o pior e mais cruel lobo de nós mesmos.
     O problema é que é justamente nesse eixo entre o bem o e mal que giram os preconceitos, as discriminações, os arbítrios, as violências públicas. E é exatamente essa visão maniqueísta que permite que o nosso país continue dividido entre aqueles que são cidadãos e têm direitos e aqueles que não têm nenhum direito.
     Naturalmente o instinto de preservação da espécie se transmuda em preservação apenas dos humanos bons, geralmente pertencentes ao clico econômico mais qualificado, assemelhados ora por certas características genéticas comuns, ora pela posse de certos signos do pertencimento, para nos tornarmos estranhos entre os iguais.
     Mas se olharmos atentamente, veremos que na sua essência, o que os linchamentos praticados sugerem é um quadro de mudanças sociais patológicas, na medida em que, nos recantos escuros de um cenário urbano que se expande deteriorado, representam a afirmação de valores negativos, que não se inserem no elenco de concepções positivas a respeito da constituição da humanidade do homem, com respeito aos procedimentos legais, institucionais e racionais de aplicação da justiça, da liberdade, responsabilidade e cidadania.
     Nesse contexto também não podemos esquecer nossas raízes históricas que fazem com que as maiores vítimas de violência no Brasil sejam os negros e pobres. Muito menos podemos fechar os olhos para o cenário de urbanização inconclusa que vivemos, insuficiente, patológica e excludente, de relações sociais essencialmente mediadas por privações.
     É preciso urgentemente nos olharmos no espelho com coragem suficiente para encarar a face feia da natureza humana e pararmos de pedir vingança contra o mal por nós mesmos causado.
     Porque somente assim podermos enxergar apenas “nós” na humanidade, e não “nós” como algo contraposto a “eles”.
     Em termos jurídicos, a condição de humanidade decorre, em essencial medida, da vida em sociedade, mais especificamente, da teia de comunicações que os seres humanos, nas suas relações sociais, mantêm ou podem manter com outros seres humanos. Assim, não faz qualquer sentido buscar compreender a dignidade da pessoa humana numa imagem de ser humano como ser isolado de tudo o mais, com base numa filosofia que tem a pretensão de interpretar o homem despido de sua socialidade, como coisa-bastante-em-si.
     A dignidade não reside apenas na pessoa, mas também e principalmente na interação entre pessoas. O respeito, como bem disse Chaplin, no seu excepcional discurso final de “O Grande Ditador”: “O reino de Deus está dentro do homem — não de um só homem ou grupo de homens, mas de todos os homens.”
     Por isso, que possamos seguir em frente, levando conosco uma única certeza: que o futuro da humanidade depende da intensidade da humanidade.
Pronto falei.
     Esse texto foi publicado hoje (28/05/2014) no site do Correio da Cidadania.

domingo, 4 de maio de 2014

GENTILEZA: UM DETALHE QUE FAZ TODA A DIFERENÇA



            Impossível falar de gentileza sem fazer referência ao Profeta Gentileza. Você já ouviu falar dele?
José Datrino era um empresário, dono de uma transportadora de cargas no Rio de Janeiro, que se viu sacudido por um acontecimento de grande força trágica: o incêndio de um grande circo na cidade de Niterói, que matou várias pessoas. Deixou tudo que possuía para viver uma missão na Terra, assumindo uma nova identidade. Passou, então, a ser um cavaleiro andante, em plena cidade contemporânea, a conduzir seu estandarte cheio de apliques, metendo-se pelos lugares para levar palavras e atitudes gentis.  Como patrimônio histórico, deixou 55 painéis nas pilastras dos viadutos cariocas com suas “palavras de gentileza”.
            Foi internado três vezes, como "maluco, débil mental". No pátio do manicômio, os enfermos ficavam todos à sua volta, ouvindo sua pregação. De volta às ruas, sua figura singular passou a atrair toda sorte de atenção. Aos que o apontavam na rua, como maluco, ele dizia: "maluco pra te amar, louco pra te salvar".  "Seja maluco, mas seja como eu, maluco beleza, da natureza, das coisas divinas."


 
           Um homem que, de tanto caminhar pelas ruas com sua túnica branca e barba longa “pregando” a gentileza, acabou conhecido como “Profeta Gentileza".

              Eu fiquei sabendo de sua existência apenas em 2009, quando ele foi interpretado pelo ator Paulo José, na novela Caminho das ìndias, de autoria de Glória Perez. Curiosa, fui atrás de sua história. Ganhei o dia e desde então, jamais o esqueci.
             Profeta Gentileza. Um grande homem, com um grande legado, que passou a maior parte de sua vida pregando a gentileza como um modo de existir. Um pouco maluco, meio folclórico e um tanto extraordinário, como todo profeta, Gentileza denuncia e anuncia.
            Denuncia este mundo, regido “pelo capeta capital que vende tudo e destrói tudo”. Vê no circo destruído uma metáfora do circomundo que também será destruído. Mas anuncia: “gentileza é o remédio para todos os males. Deus é Gentileza porque é Beleza, Perfeição, Bondade, Riqueza...a Natureza”. E, com um refrão sempre às voltas, especialmente nas 56 pilastras com inscrições, na entrada da rodoviária Novo Rio no Caju prega ao mundo: “Gentileza gera gentileza, amor”.
            Um homem que, ao dar algo que ninguém pediu, sem querer nada em troca, fez toda a diferença nas vizinhanças do Caju. E que só sendo, suavemente, foi pondo abaixo a lógica do mundo, para nos mostrar, nas plavras de Leonardo Boff, "que a crítica da modernidade não é monopólio dos grandes mestres do pensamento acadêmico como Freud, com seu O mal estar da civilização ou a Escola de Frankfurt com Horkheimer e o seu O Eclipse da razão, ou mesmo Habermas, com Conhecimento e Interesse, mas pode ser também de um grande e certeiro representante do pensamento popular e cordial."
            Em 1980, o Profeta Gentileza virou tema de música do Gonzaguinha, e nos anos 1990, da Marisa Monte, em duas canções que levam o nome Gentileza.  
            E também virou tema de livro: Brasil: Tempo de Gentileza, do professor Leonardo Guelman, publicado em 2000, pela EDUFF, ricamente ilustrado com inúmeras fotografias, principalmente do profeta e de seus penduricalhos e painéis.

            Para quem quiser saber mais sobre a sua história é só acessar:         
                       http://www.riocomgentileza.com.br/index-2.html.

            E para quem quiser ouvir as músicas em sua homenagem:
              https://www.youtube.com/watch?v=dNIR7qNgFLA
              https://www.youtube.com/watch?v=mpDHQVhyUrY


            Certamente você, assim como eu, já teve a oportunidade de conhecer, vida afora, pessoas tão gentis quanto inesquecíveis.
            Eu, por exemplo, sempre me lembro de um rapaz, deficiente físico, que ficava na esquina da República do Líbano. Sem as pernas, de cima de um skate, ele gritava logo cedo para todos aqueles que por ali passavam: “- Bom dia, minha gente. Gente bonita. Tenham um dia maravilhoso.” Além de tornar o meu dia melhor, ele sempre me fazia prometer nunca reclamar da vida.
            Lembro-me também, de uma ascensorista do Fórum João Mendes que falava como uma aeromoça e, entre um andar e outro, nos fazia viajar para diversas cidades do Brasil e do Mundo. Ao final, agradecia a companhia e desejava a todos um ótimo dia. Tamanha era a sua espiritualidade e gentileza, que na maioria das vezes acabava aplaudida. Não havia quem não saísse do elevador com um franco sorriso no rosto.
            Também me lembro de muitos outros, que não seria o caso de relacionar aqui, mas que com um sorriso, um bom dia, um elogio sincero, uma ajuda inesperada, um pequeno gesto, tornaram o meu dia mais feliz.
            Então fico me perguntando: - Por que algo tão essencial parece estar se tornando supérfluo?
            Talvez seja porque nesse mundo, em que tudo se consome, gentileza não custe nada. Ou quem sabe, porque não se ganha nada de material com ela. Talvez porque esteja fora de moda ou pareça, em algumas oportunidades, até algo meio otário ou mesmo piegas. Talvez isso aconteça porque as pessoas achem que gentileza seja algo menor, descartável.
             Infelizmente, a regra, hoje em dia, parece ser tratar mal as pessoas, fechar a cara, não dar bom dia, nunca elogiar e dizer coisas duras sem nenhum cuidado. Tudo isso elevado a título de atributo dos poderosos. Quase uma virtude.
            Estou cansada de me deparar com pessoas que entram no elevador onde só está você, nem te olham na cara e saem sem nem mesmo lhe dar um grunhido. Ou então aquelas, na garagem, que entram no elevador super-rápido e até puxam a porta, só para não correr o risco de você chegar a tempo.
            E nem se fale daquelas arrogantes, que falam bem alto para serem atendidas mais rápidas e com mais deferência. Aliás, não sei de onde surgiu essa lógica maluca de que falar alto e exalar arrogância é necessário para ser tratado com deferência?!
            Quanto mais importante a pessoa e mais alto o cargo, menos gentileza. Acho até que nos currículos de muitos chefões, intelectuais e ‘bambambans’ por aí deva estar escrito: “Doutor em gritar com as pessoas”. Ou: “PhD por Harvard em humilhar os subordinados”. Ou quem sabe: “Mestre em massacrar iguais em inglês fluente, mas se for necessário pode xingar também em alemão, francês, espanhol e mandarim”.
             A verdade, porém, é que nunca haverá razão que resista ao fato de agirmos mal com quem quer que seja. E sempre haverá um jeito bom de dizermos as coisas, mesmo as mais duras. Aliás, se pensarmos bem, veremos que é mais fácil ser gentil do que ser grosseiro. Despende menos energia e o resultado é sempre melhor.    
            Gentileza não é algo que temos, é algo que somos. E que nos tornamos. É obedecer à lógica do coração. Enxergar e vestir a pele do outro.
            Ser gentil é uma virtude. É dar sem esperar nada em troca. É um ato de resistência diante de uma vida determinada por valores calculáveis. E é justamente o resgate desta gratuidade que faz o humano ressurgir como valor primordial e o mundo ficar melhor. Dar, porque o simples dar já é receber, é isso que verdadeiramente faz toda a diferença.
            Por isso, se tiver vontade de elogiar, não pense duas vezes, elogie. Quando a crítica for imprescindível, abuse da delicadeza. Não só veja, mas enxergue as pessoas. Escute o que elas têm a lhe dizer. Sorria mais. Agradeça sempre. Faça a diferença.  
            Dia desses recebi de uma amiga uma história que circula pela internet, a respeito de um empregado de um frigorífico da Noruega que, ao término do trabalho, ficou preso na câmara frigorífica, quando a inspecionava.
            Bateu e gritou em vão, porque todos já haviam ido embora. Quando já tinha perdido as esperanças, viu a porta se abrir e o vigia entrar, o resgatando a tempo.
            Perguntado ao vigia por que ele foi abrir a porta da câmara, se isto não fazia parte da sua rotina de trabalho ele explicou: “-Trabalho nesta empresa há 35 anos, centenas de empregados entram e saem aqui todos os dias e ele é o único que me cumprimenta ao chegar pela manhã e se despede de mim ao sair. Hoje pela manhã disse ‘Bom dia’ quando chegou. Entretanto, não se despediu de mim na hora da saída. Imaginei que poderia ter-lhe acontecido algo. Por isto o procurei”.”
            Isso mesmo: o homem foi salvo por sua gentileza!!!
            Não sei se esta história é verdadeira ou não, só sei que eu acredito nela. E você?